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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Responsabilidades

            - Paiê! Ajuda com a lição de matemática? Amanhã tem prova.
            - Claro, filho. Espera só acabar o filme que eu vou.
            O pai cochila no sofá, o garoto cochila, no tapete, esperando por ele, e a mãe, que não sabia de nada, conduziu os dois para as camas. Amanhece, todos acordam tarde e saem apressados, pai e filho, para seus afazeres.
            - Caramba! Não tenho a mínima ideia de como resolver essas questões! – desespera-se o garoto.
            Enquanto isso, em uma casa vizinha à escola:
            - Pois é, Dr. Honório, paguei uma investigação particular e creio que a chave para provar minha inocência está nesse relatório.
            O advogado recebe o grande volume de seu cliente, olha com desânimo para a quantidade de páginas e diz:
            - Ótimo, ótimo. Lerei isso assim que chegar em casa, e amanhã estaremos comemorando sua liberdade.
            Sai da casa de seu cliente e, no caminho de casa, para no camelô e compra o filme que tanto queria ver. Chegando em casa, reclama do filho pelo mal desempenho em matemática e não se contém: Joga o relatório em cima da mesa e vai assistir ao filme comprado. Como é seu costume, cochila antes de acabar.
DIÁRIO DE...
JOSÉ F. INOCÊNCIO CONDENADO A 25 ANOS DE RECLUSÃO APÓS DEFESA CONFUSA E INEFICIENTE
            Alguns domingos após o ocorrido, a cidade agita-se Com um referendo onde a população deveria optar se gostaria ou não que o uso de drogas no município virasse crime.
            - Ô Honório, faltam 15 minutos para encerrar! Já foi votar?
            - Ainda não, amor. Só terminar a partida de paciência que eu vou.
DIÁRIO DE...
MEDIDA PELA CRIMINALIZAÇÃO NÃO PASSA POR UM VOTO
            Algum tempo depois, um mecânico entra no hangar de manutenção do aeroporto da cidade e grita:
            -MANEL!
            - DIGA!
            - Já terminou a manutenção daquela turbina?
            - Falta só uma coisinha.
            - Então vai logo terminar, home!
            - Peraí, vou depois do jogo do mengão.
DIÁRIO DE...
ACIDENTE AÉREO FATAL
            Defeito mecânico em turbina causou a queda do jatinho ..., fretado ontem por algumas personalidades de nossa comunidade. Não houve sobreviventes. Dentre as vítimas estava o advogado Honório P. Dante, famoso pelo caso...
Fabiano Machado

Nem tudo que reluz...

            - Mas já acontece há três dias!
            Todos no bar olharam para a mesa onde um dos dois ocupantes levantou a voz tão abruptamente. O outro, meio sem graça, procurou dispersar a atenção das pessoas com gestos típicos indicando que o amigo já bebera demais. Quando consegue, vira-se para o companheiro e diz:
            - Sua Anta! Controle-se!
            - Foi mal, mas não agüento mais! – replicou, com uma expressão extremamente cansada – três dias que não durmo, viando.
            - Então aproveite essa vigília. – falou Fernando, entre sério e risonho – Procure explicações lógicas para isso.
            Luke acenou com a cabeça sem dizer nada. Pouco depois, terminaram sua cerveja e cada um foi para seu lado. Com as palavras de Fernando na cabeça, nosso amigo foi para casa muito a contragosto, mas não podia evitar, afinal era seu lar e tinha de retomá-lo. Comprara o apartamento de dois quartos há pouco mais de um ano e tudo transcorria sem problemas, até poucos dias atrás, quando viu o rosto pela primeira vez.
            Era uma noite de domingo como outra qualquer, melancólica e arrastada, e Luke estava assistindo TV, em um estado entre o sono e a vigília, quando notou um rosto, com olhos brancos e brilhantes, olhando para ele através da janela por trás da televisão. Embora não tivesse uma expressão definida, aquela face passava uma maldade de maneira inexplicável. Desde esse encontro o rapaz ficou com medo de dormir ali.
            Chegou em casa e dirigiu-se rapidamente ao seu posto de guarda nas últimas noites, o sofá, e começou a encarar seu algoz. Tinha a clara impressão que, a cada dia, o rosto ganhava mais expressividade, um rosto demoníaco de fato.
            “Racionalizar”, pensou, “tenho de achar uma solução lógica... Fechar a cortina!” Riu com a ideia, tinha de resolver o problema, e não mascará-lo. Não podia ser uma pessoa, pelo menos não viva, uma vez que o apartamento está no quinto andar e o prédio não possui parapeito ou saída externa de incêndio.
            “Duas opções: ou isso é paranormal ou estou ficando louco!”, e continuou, “Deve ser a primeira, o sonho não pode ser à toa.” Como não conseguia dormir em casa, e o corpo precisa de descanso mesmo contra nossa vontade, Luke começou a dormir no único lugar onde se sentia seguro: no trabalho.
            Além das broncas e advertências, os sonhos também o perturbavam nesses momentos, aliás O sonho o perturbava, pois ele tinha apenas um sonho recorrente: O rosto ganhava um corpo e aqueles olhos dominavam-no. Isso o perturbava demais, deixando-o naquele estado deplorável.
            Enquanto pensava nessas coisas, uma terceira opção surgiu! Olhando fixamente para o rosto desde que chegara, percebeu que o brilho dos olhos variava a intensidade em intervalos irregulares. Pela primeira vez, olhou para além do rosto, através da janela, e notou, trêmulo, que a variação ocorria quando um carro passava na rua. Começando a animar-se, achou um refletor virado para seu prédio, e juntou rapidamente as peças.
            - Claro! – falou para si mesmo, a plenos pulmões – O reflexo das luzes gera o efeito de olhos brilhantes!
            Uma explicação física e normal! Aproximou-se da janela e notou que o rosto parecia, de perto, um defeito no vidro, sem brilhos ou nada assustador. Começou a gargalhar furiosamente; como tinha sido idiota! A expressão do rosto certamente foi gerada pela mente cansada e impressionada pela privação de sono. Comemorou a descoberta com um copo de leite e foi dormir feliz. Amanhã providenciaria a troca de vidro. Apagou tudo e dormiu rapidamente.
            Providenciaria porque a mancha já não estava mais na janela. Na quietude da madrugada, apenas os pontos de luz permaneciam lá. O rosto, com olhos opacos, dirigia-se ao quarto de Luke, com um corpo etéreo e um sorriso zombeteiro em sua expressão malévola.
Fabiano Machado

domingo, 17 de julho de 2011

O motivo

Uma homenagem a todos os colegas que dedicam suas vidas à educação de nossos jovens.

            - Merda!
            Era a palavra que melhor definia a vida de Nicolau naquele momento. Acabara de enfiar o pé até a canela em uma poça de lama no estacionamento da escola municipal onde leciona língua portuguesa. Quem olhasse para aquele homem de estatura mediana e ralos cabelos negros, imaginaria que ele já estava para se aposentar por causa de seu andar curvado e olhos com uma expressão sempre cansada, mas ele acabara de completar 40 anos. A aparência veio como presente por anos trabalhando no ensino público.
            Enquanto caminhava, ou melhor, arrastava-se em direção à sala dos professores, apenas para constatar que a sala de vídeo continuava inoperante, pensava em tudo que se passou desde o momento de sua aprovação no concurso público para o município. Lembrava-se do professor recém-formado em letras, e empolgadíssimo com a perspectiva de fazer a diferença, mas com os anos de descaso do poder público, baixos salários e falta de interesse da maioria dos alunos, acabou entrando no sistema que reina sobre muitos professores: o de seguir com a maré.
            - Por que ainda faço isso? – pensava enquanto dirigia-se à sala de aula – Meus pais tem uma construtora, poderia estar lá com um salário muito melhor, sem levar trabalho para casa e com as contas equilibradas.
            Aula após aula, o dedicado professor tentava passar o conteúdo para os alunos, trazia assuntos atuais para discussão e produção posterior de textos, pagava cópias de material para os alunos comprometendo ainda mais seu orçamento mensal, mas o que recebia em retorno era o descaso dos estudantes. Muito mais preocupados com a final do brasileirão, quem ganha o BBB ou qual o último sucesso rolando nos mp4 da escola. Sem falar nas piadinhas constantes:
            - Esqueceu de lavar a calça, fessor?
            Final de ano, final do último período, o professor Nicolau toma uma decisão drástica: amanhã irá pedir exoneração do cargo! Não precisa disso, 20 anos foram o bastante! Trabalhará com os pais e nunca mais olhará para a educação.
            Após assinar o ponto, começou a caminhar para o estacionamento imaginando uma maneira de entrar no carro sem sujar-se ainda mais quando uma voz chamou.
            - FESSOR! Professor Nicolau, espera!
            Ele olha para trás, e vindo correndo em sua direção estava uma de suas alunas do nono ano. “Provavelmente quer melhorar a nota!” pensou desolado, mas ao olhar melhor viu que era Rita, uma das raras estudantes interessadas nas aulas. Nicolau para e espera. A garota não diminui a velocidade, e choca-se contra o atônito professor em um abraço apertado enquanto fala numa velocidade difícil de acompanhar:
            - Fessor, aiiiiiiiiii, nem acredito! Passei, professor, passei! A prova estava a cara do senhor... a redação então; o senhor trabalhou aquele tema em sala! Parece até que adivinhou! O Senhor tem parentesco com o Harry Potter? Brincadeira, hahaha! Mas falando sério, Professor, se não fosse pelas suas aulas, não sei se conseguiria passar. Nem acredito que vou estudar no IFRN[1]! Brigada, professor.
            Rita deu um beijo no rosto de seu mestre, e saiu tão rápido quanto chegara. Nicolau ficou parado olhando a garota se afastar. Repentinamente um sorriso iluminou seu rosto marcado pelos anos de dedicação à educação. Uma lágrima desceu de seus olhos e ele lembrou o porquê de fazer tudo aquilo: Por mais que muitos não queiram nada e o governo atenda a esse pedido, ele faz o que faz por aqueles que querem e precisam disso para crescer. “fazer a minha parte, uma cabeça de cada vez!” Pensou mais animado.
            Caminhou em direção ao carro deixando para trás a aparência de cansaço e a preocupação com a poça de lama. Entrou no carro e foi direto para casa, precisava planejar suas aulas para o ano vindouro.
Fabiano Machado


[1] Instituto Técnico Federal do Rio Grande do Norte