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domingo, 8 de abril de 2012

Por trás da cortina

Ele ainda não tinha se acostumado com a ideia de ir morar em outra casa, longe de todos e de tudo que conheceu durante a vida. Era uma mudança muito radical, mas sua esposa insistiu bastante nessa mudança de ares, afinal seria um local mais tranquilo para ele escrever e mais perto de onde ela trabalhava. Trazia muitas vantagens, concordava, mas ainda assim o desconhecido ainda o assustava.

- Você vai adorar, amor! É uma ruazinha tranquila e familiar, e a casa parece existir desde sempre. Você pode tirar muitas ideias só de olhar para ela!

Carlos olhou para a esposa com um sorriso impresso no rosto que não combinava absolutamente com seu estado de espírito. Escrevia livros de mistério, e uma casa antiga realmente seria uma inspiração, mas não precisava MORAR nela, uma simples visita já bastava. Guardou o comentário para si, afinal Maria gastou muito tempo procurando essa casa que, em suas palavras, "era perfeita para o que os dois queriam!".

Ao descer em frente à casa, Carlos olhou para a rua onde iria viver. Ela não tinha saída, mas era mais espaçosa que um beco, e isso permitia que os pais deixassem as crianças brincando tranquilamente, já que o fluxo de carros era composto apenas de moradores. Todos os vizinhos o cumprimentaram e alguns já convidaram o casal novo para um churrasco ou jantar para se conhecerem melhor. Era realmente uma rua bem aconchegante. Então seu olhar voltou-se para a casa.

Era realmente antiga, felizmente não era como as casas antigas de suas histórias, mas muito bem conservada e recém reformada, e que combinava com o resto da rua. Repentinamente, Maria o abraça falando muito rápido:

- Linda, né amor? Você tem de ver lá dentro... muito espaçosa... quartos suficientes para filhos...- e enquanto prosseguia descrevendo o que estava na sua frente, ia passando pelos cômodos da casa. Olhando de fora, parecia existir muitos mais, todavia o que acontecia era de serem bastante espaçosos. A casa, logicamente, estava desmobiliada, entretanto uma coisa chamou a atenção de Carlos. Uma cortina separava a sala de jantar do que Maria chamou de seu escritório. Era uma cortina muito bem trabalhada e extremamente bonita, bonita demais para ter sido deixada de propósito.

- Querida, e essa cortina? Será que os donos não esqueceram de levá-la?

- Não, a corretora falou que está aí desde sempre. Parece fazer parte da casa como as paredes. Mas se te incomoda... podemos retirá-la daí.

- Não... é até bom para evitar distrações desnecessárias. Realmente é uma linda casa.

A esposa deu um grande sorriso e o abraçou mais uma vez. Começaram então a dura tarefa de desempacotar e organizar a mobília na casa nova. Durante todo o tempo que fizeram isso, a cortina exerceu uma atenção especial sobre Carlos.

Após um mês, e vários churrascos na vizinhança, a vida do casal na nova casa estava plenamente estabelecida. A esposa trabalhava durante todo o dia no fórum da cidade, enquanto que o marido escrevia seu novo romance policial. À noite, jantavam juntos e discutiam sobre os acontecimentos do dia. Ou melhor, ela discutia porque Carlos omitia alguns detalhes do seu dia.

O quarto onde escrevia tinha uma janela de frente para a rua, e frontal a ela ficava a passagem para a sala de jantar, com a cortina separando-a. A mesa do computador dele ficava virada para a parede, para evitar de distrair-se olhando para a rua. No começo parecia impressão, mas sempre que passava um pouco de vento pela janela, Carlos ouvia barulhos, indefinidos no começo mas, com o tempo, ele começou a distinguir vozes também. "São as crianças e pessoas na rua" pensou quando ouviu. Acostumado com esses barulhos, continuou escrevendo e resolveu não perturbar sua esposa com isso, afinal ela estava tão feliz na casa, e ele mesmo já não estava achando tão incômodo. Pelo menos ainda não.

- Hoje eu acabo esse bendito capítulo! - Bradou ele com muito bom humor, e sentou-se para trabalhar. Olhou pela janela e viu que caía uma chuva fina, mas forte o suficiente para manter as pessoas em casa. "Ótimo", pensou, "Hoje escrevo sem os barulhos e vozes". Abriu a janela para arejar o ambiente e começou o trabalho. Súbito, uma corrente de ar adentra o quarto e o som de vozes brigando enche o ambiente. Carlos levanta-se assustado e confuso. Corre para a janela e, assustado, vê que tudo está completamente deserto. Fica olhando para os lados e, em um misto de terror e espanto, ele vê.

No instante que ele olha na direção da cortina, passa mais um pé-de-vento e ela ergue-se, movimento normal de qualquer cortina, mas o que aparece do outro lado não é SUA sala de jantar, mas um salão antigo com uma mobília que remontava o tempo de império. E lá ele enxergou dois pares de pernas, ou melhor, um par de pernas e um vestido muito longo que supunham um outro par, e estava acontecendo uma discussão muito acirrada, quando a voz de sua esposa o tirou do transe:

- O QUE ESTÁS FAZENDO! SOLTE ESSA ARMA!

Sem pensar muito bem, pegou um peso de papel para usar como arma e entrou desesperado na sala de jantar. Estava vazia, e mais, era de novo a sala de jantar de Carlos e Maria, sem tirar nem pôr. "Alucinação", pensa trêmulo, "só posso estar alucinando, mas parecia tão REAL". Tomou um calmante e ficou o resto do dia sem chegar perto das salas com a cortina. Quando a esposa chegou para jantar, decidiu manter o acontecido somente para ele.

No dia seguinte, decidiu que estava sendo bobo e resolveu voltar a escrever. Após algum tempo, recomeçam as vozes. Ele tenta não olhar para a cortina, mas a curiosidade era mais forte. O cenário era o mesmo, mas a situação mudou; agora eram dois vestidos longos sentados em uma espécie de sofá, e uma das mulheres tinha a voz igual à de sua esposa. Deitou no chão para ver e ouvir melhor, mas tudo parou. a cortina tampava a visão da sala, mas as vozes também cessaram. Enquanto pensava nisso, entrou um vento fraco e mexeu um pouco a cortina, insuficiente para ver algo, mas o bastante para mais um fio de conversa invadir o escritório. Então Carlos compreendeu como a coisa funcionava.

O vento era que ativava o que quer que fosse aquilo. Quando ele entrou correndo na sala de jantar, ele tocou na cortina, e esse ato deve ter "quebrado o encanto". Carlos estava mortificado. Sempre escreveu sobre essas coisas, mas nunca imaginou que pudesse acontecer com ele. Com o passar dos dias, o escritor esqueceu sua obra e concentrou-se em descobrir a história por trás da cortina. Como o vento normalmente era fraco, pouco ele via, o que o frustrava um pouco, mas conseguia ouvir bem as conversas. Resumidamente, naquela casa também morou um casal, como eles, mas o casamento fora arranjado e o marido maltratava a garota. E ela já não aguentava mais.

Maria começou a desconfiar que algo estava errado, pois o marido parou de falar sobre o livro durante os jantares, ficando muito tempo absorto e pensativo. Quando ela perguntou o que estava acontecendo, ele simplesmente respondeu:

- Pesquisa.

Após outro mês de "pesquisa", Carlos escutou uma estranha conversa através da cortina. Ao olhar, viu um vestido e um par de pernas desconhecido.

- Prima, foge comigo. Voltamos à minha terra e teu marido jamais descobrirá!

- Ele tem conhecidos no Brasil todo! Nunca ficaremos em paz!

- Tu não podes mais ficar junto a esse crápula! Eu o enfrentarei por ti!

- Não - e começa a chorar baixinho - eu não suportaria.

- Vem cá - e o primo abraça sua amada com ternura.

De repente, um barulho na porta. O marido da garota chegara e nenhum dos dois pombinhos atentou para isso. Carlos, vendo o desastre que iria acontecer, age quase sem pensar. Pega o peso de papel que pensara em usar como arma tempos atrás e arremessa com força pela abertura da cortina. O objeto atravessa séculos  e acerta, com estrondo, a parede próxima ao casal. Eles separam-se com o susto no momento que o marido entrou. "Isso também é um portal!" Pensa assombrado o escritor.

"O que será que aconteceu?". Era a pergunta que assombrava sua mente durante aquele jantar. Sua esposa, preocupada e quase às lágrimas, pergunta o que estava acontecendo. Ele olha para ela e diz:

- Amanhã tente chegar um pouco mais cedo do trabalho, e eu te mostrarei. - e com essas palavras foi dormir.

Passou o dia pensando em como explicar para Maria toda aquela situação. Quando finalmente descobriu uma maneira de parecer menos louco, foi para o escritório esperá-la. Tentou manter a janela fechada, mas o calor era muito forte, até que desistiu de esperar e escancarou a janela. Assim que o fez, uma lufada fortíssima entrou no escritório, derrubando alguns objetos. Súbito, um tiro e um grito desesperado! 

Virou rapidamente, em um estado entre o pânico e o alerta e viu: O vento levantara a cortina quase até o teto e ele, finalmente, teve uma visão completa do cenário. Um homem jovem jazia no chão com um tiro no peito, enquanto que um mais velho avançava na direção de uma mulher, que tentava desesperadamente proteger-se com as mãos. O homem com a arma nas mãos tinha um olhar alucinado e gritava:

- QUERIAS TRAIR-ME?! POIS VAIS PARA O INFERNO JUNTO AO TEU AMADO!

Nesse instante, a mulher abaixa as mãos e ele vê que não só a voz é igual a de sua esposa, mas a própria é um retrato! Então, o mesmo instinto que, semanas atrás, o fez entrar gritando na sala de jantar agiu mais uma vez. Viu que a cortina estava baixando e se atirou rolando pela abertura. Repentinamente se viu no Brasil imperial, no meio de uma cena de crime, trajando chinelas de dedo, bermuda jeans e camiseta da seleção.

O homem, ao ver aquela figura que materializou-se em sua sala, perdeu por um momento o poder de ação. Quando viu essa hesitação, Carlos pulou em cima do sujeito e lutou pela posse da arma, mas o marido traído era mais forte e o arremessou contra a parede. Ficou parado em frente à cortina e disse:

- De onde surgiste, mandrião? Não interessa, terás o mesmo destino dos outros dois!

Apontou a arma cuidadosamente para Carlos, que muito tonto pela pancada na parede, tentou apoiar-se no chão para levantar-se e sentiu o peso de papel nas mãos. Rápido como um raio, arremessou o peso contra seu inimigo e acertou-o na fronte. Esse largou a arma e caiu segurando-se na cortina, arrancando-a de seu suporte.

Ainda trêmulo por causa da luta, aproxima-se do homem e constata sua morte. Escuta alguns soluços atrás dele e vê a garota aproximando-se do primo assassinado. Subitamente, algo vem a sua cabeça: Olha para a cortina destruída e em seguida, para a mulher que era o retrato de sua esposa. Cai de joelhos e solta um grito desesperado.

Maria chega em casa mais cedo, como tinha prometido, mas estranha o silêncio incomum. Dirige-se para o escritório e fica chocada com a cena: A cortina fora rasgada do suporte, parecendo uma cena de luta, mas não estava em lugar algum, nem ela nem os lutadores. Quando entra no ambiente, pisa em alguma coisa dura. Ao olhar o que era, ficou pensando em como uma arma daquele tipo tinha ido parar ali. Correu para chamar a polícia.

Fabiano Machado

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