-Acho que não deveríamos estar aqui!
Era a décima vez que Jorge repetia essa frase. A primeira foi quando os quatro amigos resolveram colocar em prática o plano de investigar a ala proibida da biblioteca universitária. Antes da reforma, ninguém se incomodava muito com ela, mas desde que colocaram todo o tipo de alarmes, ela começou a despertar a atenção dos curiosos, especialmente daqueles encorajados pelo consumo um pouco acima da média de álcool.
Miguel, mesmo embriagado, era um gênio eletrônico e desarmou facilmente todas as defesas eletrônica do local. Enquanto Jorge repetia incansavelmente sua frase, os jovens iam observando os livros nas estantes. No início eram livros "comuns", primeiras edições ou obras já fora de circulação, nada anormal. Mas, ao avançar um pouco mais, os livros foram rareando e títulos estranhos, referentes ao ocultismo, começaram a aparecer.
Todos estavam em estações de pesquisa, possivelmente para tradução, já que boa parte estava escrito em línguas muito antigas ou já desaparecidas. Todos, menos um. No final da ala, estava um livro com uma encadernação muito estranha, cheia de costuras e negra, com o título escrito em um vermelho desbotado "Ultra terminum". Esse encontrava-se dentro de uma redoma com seu próprio sistema de alarme, nada que segurasse Miguel, claro, mas aquilo chamou a atenção de André, místico oficial do grupo.
- Esse deve ser bem interessante! - disse em uma voz para lá de pastosa - Uma espécie de Necronomicon!
- Cara, cê tá lendo muito Lovecraft. - Disse Jorge, olhando nervosamente para os lados - Vamos sair logo daqui.
- Claro, claro. - Disse andré - Miguel, desarma o troço aí! O ultra-qualquer-coisa vem conosco.
***
- Ultra terminum é latim. - falou professoralmente Eduardo, que era estudante de línguas - significa Além da fronteira.
- Qual fronteira? - perguntou Jorge enquanto sofria com uma bruta dor de cabeça causada pela ressaca.
- Pelo que entendi disso aqui, entre esse mundo e o outro.
- O dos mortos? - Perguntou um assustado e arrependido Miguel.
- Não, não. Fala de um mundo de onde vieram os deos, deuses, e para onde voltaram depois da revolta dos homens.
Durante toda a conversa, André ficou bem pensativo e calado. Os amigos tomaram isso como efeito da bebedeira da noite anterior. Quando começaram a discutir sobre como devolver o livro, ele falou:
- Temos de trazê-los de volta!
- HÃ!! - fizeram os três em uníssono.
- Já vi alguns livros que falavam sobre esses deuses. Eram extremamente cruéis, mas devam poderes incríveis àqueles que os serviam. Nesse livro deve falar alguma forma de entrar em contato com eles!
- Andou fumando algo estragado!? - meio que gritou Miguel - Eles foram expulso daqui por alguma razão! Não podemos soltar isso na terra!
- Pensem bem - argumentou André - Podemos entrar em contato e exigir alguma coisa pra abrir a passagem de volta. Se vamos cumprir nossa parte... são outros quinhentos!
- Peraí - Disse Eduardo - Você está insinuando que devemos tentar enganar criaturas extremamente poderosas, malévolas e antigas; que provavelmente inventaram a enganação? Você não percebe - já alterando o tom de voz - que essas coisas podem ser a base da criação do mito do diabo? Da encarnação do mal e outras coisinhas mais?
André deu um sorriso e falou em tom ameno:
- Não sei vocês, mas eu cansei de ser o estranho, o nerd, o rejeitado em todo canto. Eu quero poder, e esse livro tem a chave. Se eles são a inspiração do demo, então nunca foram verdadeiramente embora. Sendo assim. não soltaremos nada sobre a terra, apenas barganharemos algum acordo. Se não gostarmos dos termos, é só fecharmos a conexão de novo.
- Bem - falou Miguel, meio que em dúvida - faz sentido.
- Jorge não falou nada, faria, como sempre, o que os outros decidissem. André não parecia muito convencido, mas o amigo sempre teve uma capacidade argumentativa muito forte.
***
- Por que estamos aqui?
A pergunta, como sempre, veio de Jorge. Os quatro amigos estavam ajoelhados em círculo, tentando proteger-se do vento forte que soprava na praia de Búzios.
- Bom - respondeu André - O livro fala que o portal deve ser aberto perto da água. Você preferia ir para o Potengi ou uma Lagoa?
- Na verdade preferia estar em casa, mas deixa pra lá.
Olhando torto para o amigo, André começou a explicar:
- O livro não fala em fazer contato, mas em abrir portais. Conversando com Eduardo, decidimos invocar um emissário dos... deuses, e negociar com ele. O ritual é bem simples: Durante a lua cheia, devemos entoar as palavras ritualísticas em frente a uma grande massa de água.
- E para fechar? - perguntou o sempre lógico Miguel.
- Não precisaremos fechar! - Falou apressado André. - Já deu muito trabalho traduzir essa parte.
- Bem, - disse Eduardo - Já que a ideia foi sua, André, VOCÊ diz as palavras. - E passou para ele um papel com os dizeres malignos.
André pega o papel e grita, a todos pulmões, aquelas palavras em um idioma já morto. Mesmo sem entender o significado, os amigos sentem toda a maldade impregnada nelas. Nesse momento, a lua brilha mais forte e, do reflexo da lua na água, um pequeno ser começa a aproximar-se da praia. Parecia humano, mas tinha um tom de pele puxado para o cinza, dentes serrilhados e olhos muito escuros; sem contar que tinha um fedor insuportável de peixe podre.
- Quem me chamou? - Disse com uma voz que lembrava um gargarejo.
- Fomos nós, poderoso ser! - Adiantou-se André. - E pedimos humild...
- NÃO! - gritou o homem-peixe - Quem pronunciou as palavras?
- Bem... Fui eu. - Disse André, já temendo o pior.
O homenzinho deu um sorriso malévolo e disse:
- Então só preciso de sua energia.
As coisas aconteceram muito rápido a partir daí. A lua brilhou ainda mais forte e três tentáculos saíram do mar e agarraram os três amigos de André, puxando-os para o mar. Gritos de agonia e ossos quebrando marcaram o tempo que durou o arrastamento. André, desesperado, corre em direção à estrada enquanto o ser gargalha em suas costas. Subitamente, sentiu uma dor inimaginável e todo o seu corpo tremeu como se uma descarga de energia o tivesse atingido.
Caiu paralisado, e imediatamente sua mente começou a repassar todo o acontecido desde o dia da invasão à biblioteca. Ao chegar no momento da fuga, todo seu corpo treme, de novo, com a descarga. Mais uma vez os episódios começam a repassar, e, apesar da dor extrema, ele compreende... lembrando da última fala do estranho ser, ele compreende. Não estava sendo atingido, e sim sendo drenado.
***
Um médico novato vem fazendo a ronda pelo hospital, conhecendo os casos que irá tratar, e estranha o fato de uma das enfermarias, tendo quatro leitos, permanecer o tempo inteiro com apenas um paciente. Entrou lá e encontrou uma enfermeira. No momento que o médico entrou, o paciente, um jovem de aparentes 22 anos, teve um grande espasmo, parecido com um choque elétrico, seguido de um grito lacinante. O médico sobressaltou-se e correu para prestar socorro quando a enfermeira disse:
- Não é necessário, doutor. Desde o dia em que deu entrada, ele sofre esses espasmos, mas logo volta a condição normal dele, se é que podemos chamar o coma de normal.
- O que aconteceu com ele?
- Ninguém sabe. O homem que o trouxe disse apenas que deveríamos mantê-lo vivo a todo custo. Trouxe uma declaração dos pais autorizando o tratamento e paga todo mês, desde o ano passado.
- E não disse o que aconteceu? - Perguntou o médico enquanto fazia os exames de rotina.
- Não, mas suponho que foi um acidente marítimo. Aquele homem exalava um cheiro nauseante de peixe podre.