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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Coma


-Acho que não deveríamos estar aqui!
Era a décima vez que Jorge repetia essa frase. A primeira foi quando os quatro amigos resolveram colocar em prática o plano de investigar a ala proibida da biblioteca universitária. Antes da reforma, ninguém se incomodava muito com ela, mas desde que colocaram todo o tipo de alarmes, ela começou a despertar a atenção dos curiosos, especialmente daqueles encorajados pelo consumo um pouco acima da média de álcool.
Miguel, mesmo embriagado, era um gênio eletrônico e desarmou facilmente todas as defesas eletrônica do local. Enquanto Jorge repetia incansavelmente sua frase, os jovens iam observando os livros nas estantes. No início eram livros "comuns", primeiras edições ou obras já fora de circulação, nada anormal. Mas, ao avançar um pouco mais, os livros foram rareando e títulos estranhos, referentes ao ocultismo, começaram a aparecer. 
Todos estavam em estações de pesquisa, possivelmente para tradução, já que boa parte estava escrito em línguas muito antigas ou já desaparecidas. Todos, menos um. No final da ala, estava um livro com uma encadernação muito estranha, cheia de costuras e negra, com o título escrito em um vermelho desbotado "Ultra terminum". Esse encontrava-se dentro de uma redoma com seu próprio sistema de alarme, nada que segurasse Miguel, claro, mas aquilo chamou a atenção de André, místico oficial do grupo.
- Esse deve ser bem interessante! - disse em uma voz para lá de pastosa - Uma espécie de Necronomicon!
- Cara, cê tá lendo muito Lovecraft. - Disse Jorge, olhando nervosamente para os lados - Vamos sair logo daqui.
- Claro, claro. - Disse andré - Miguel, desarma o troço aí! O ultra-qualquer-coisa vem conosco.
***
- Ultra terminum é latim. - falou professoralmente Eduardo, que era estudante de línguas - significa Além da fronteira.
- Qual fronteira? - perguntou Jorge enquanto sofria com uma bruta dor de cabeça causada pela ressaca.
- Pelo que entendi disso aqui, entre esse mundo e o outro.
- O dos mortos? - Perguntou um assustado e arrependido Miguel.
- Não, não. Fala de um mundo de onde vieram os deos, deuses, e para onde voltaram depois da revolta dos homens. 
Durante toda a conversa, André ficou bem pensativo e calado. Os amigos tomaram isso como efeito da bebedeira da noite anterior. Quando começaram a discutir sobre como devolver o livro, ele falou:
- Temos de trazê-los de volta!
- HÃ!! - fizeram os três em uníssono.
- Já vi alguns livros que falavam sobre esses deuses. Eram extremamente cruéis, mas devam poderes incríveis àqueles que os serviam. Nesse livro deve falar alguma forma de entrar em contato com eles!
- Andou fumando algo estragado!? - meio que gritou Miguel - Eles foram expulso daqui por alguma razão! Não podemos soltar isso na terra!
- Pensem bem - argumentou André - Podemos entrar em contato e exigir alguma coisa pra abrir a passagem de volta. Se vamos cumprir nossa parte... são outros quinhentos!
- Peraí - Disse Eduardo - Você está insinuando que devemos tentar enganar criaturas extremamente poderosas, malévolas e antigas; que provavelmente inventaram a enganação? Você não percebe - já alterando o tom de voz - que essas coisas podem ser a base da criação do mito do diabo? Da encarnação do mal e outras coisinhas mais?
André deu um sorriso e falou em tom ameno:
- Não sei vocês, mas eu cansei de ser o estranho, o nerd, o rejeitado em todo canto. Eu quero poder, e esse livro tem a chave. Se eles são a inspiração do demo, então nunca foram verdadeiramente embora. Sendo assim. não soltaremos nada sobre a terra, apenas barganharemos algum acordo. Se não gostarmos dos termos, é só fecharmos a conexão de novo.
- Bem - falou Miguel, meio que em dúvida - faz sentido.
- Jorge não falou nada, faria, como sempre, o que os outros decidissem. André não parecia muito convencido, mas o amigo sempre teve uma capacidade argumentativa muito forte.
***
- Por que estamos aqui?
A pergunta, como sempre, veio de Jorge. Os quatro amigos estavam ajoelhados em círculo, tentando proteger-se do vento forte que soprava na praia de Búzios. 
- Bom - respondeu André - O livro fala que o portal deve ser aberto perto da água. Você preferia ir para o Potengi ou uma Lagoa?
- Na verdade preferia estar em casa, mas deixa pra lá.
Olhando torto para o amigo, André começou a explicar:
- O livro não fala em fazer contato, mas em abrir portais. Conversando com Eduardo, decidimos invocar um emissário dos... deuses, e negociar com ele. O ritual é bem simples: Durante a lua cheia, devemos entoar as palavras ritualísticas em frente a uma grande massa de água.
- E para fechar? - perguntou o sempre lógico Miguel.
- Não precisaremos fechar! - Falou apressado André. - Já deu muito trabalho traduzir essa parte. 
- Bem, - disse Eduardo - Já que a ideia foi sua, André, VOCÊ diz as palavras. - E passou para ele um papel com os dizeres malignos.
André pega o papel e grita, a todos pulmões, aquelas palavras em um idioma já morto. Mesmo sem entender o significado, os amigos sentem toda a maldade impregnada nelas. Nesse momento, a lua brilha mais forte e, do reflexo da lua na água, um pequeno ser começa a aproximar-se da praia. Parecia humano, mas tinha um tom de pele puxado para o cinza, dentes serrilhados e olhos muito escuros; sem contar que tinha um fedor insuportável de peixe podre.
- Quem me chamou? - Disse com uma voz que lembrava um gargarejo.
- Fomos nós, poderoso ser! - Adiantou-se André. - E pedimos humild...
- NÃO! - gritou o homem-peixe - Quem pronunciou as palavras?
- Bem... Fui eu. - Disse André, já temendo o pior. 
O homenzinho deu um sorriso malévolo e disse:
- Então só preciso de sua energia.
As coisas aconteceram muito rápido a partir daí. A lua brilhou ainda mais forte e três tentáculos saíram do mar e agarraram os três amigos de André, puxando-os para o mar. Gritos de agonia e ossos quebrando marcaram o tempo que durou o arrastamento. André, desesperado, corre em direção à estrada enquanto o ser gargalha em suas costas. Subitamente, sentiu uma dor inimaginável e todo o seu corpo tremeu como se uma descarga de energia o tivesse atingido. 
Caiu paralisado, e imediatamente sua mente começou a repassar todo o acontecido desde o dia da invasão à biblioteca. Ao chegar no momento da fuga, todo seu corpo treme, de novo, com a descarga. Mais uma vez os episódios começam a repassar, e, apesar da dor extrema, ele compreende... lembrando da última fala do estranho ser, ele compreende. Não estava sendo atingido, e sim sendo drenado.
***
Um médico novato vem fazendo a ronda pelo hospital, conhecendo os casos que irá tratar, e estranha o fato de uma das enfermarias, tendo quatro leitos, permanecer o tempo inteiro com apenas um paciente. Entrou lá e encontrou uma enfermeira. No momento que o médico entrou, o paciente, um jovem de aparentes 22 anos, teve um grande espasmo, parecido com um choque elétrico, seguido de um grito lacinante. O médico sobressaltou-se e correu para prestar socorro quando a enfermeira disse:
- Não é necessário, doutor. Desde o dia em que deu entrada, ele sofre esses espasmos, mas logo volta a condição normal dele, se é que podemos chamar o coma de normal.
- O que aconteceu com ele?
- Ninguém sabe. O homem que o trouxe disse apenas que deveríamos mantê-lo vivo a todo custo. Trouxe uma declaração dos pais autorizando o tratamento e paga todo mês, desde o ano passado.
- E não disse o que aconteceu? - Perguntou o médico enquanto fazia os exames de rotina.
- Não, mas suponho que foi um acidente marítimo. Aquele homem exalava um cheiro nauseante de peixe podre.

domingo, 8 de abril de 2012

Por trás da cortina

Ele ainda não tinha se acostumado com a ideia de ir morar em outra casa, longe de todos e de tudo que conheceu durante a vida. Era uma mudança muito radical, mas sua esposa insistiu bastante nessa mudança de ares, afinal seria um local mais tranquilo para ele escrever e mais perto de onde ela trabalhava. Trazia muitas vantagens, concordava, mas ainda assim o desconhecido ainda o assustava.

- Você vai adorar, amor! É uma ruazinha tranquila e familiar, e a casa parece existir desde sempre. Você pode tirar muitas ideias só de olhar para ela!

Carlos olhou para a esposa com um sorriso impresso no rosto que não combinava absolutamente com seu estado de espírito. Escrevia livros de mistério, e uma casa antiga realmente seria uma inspiração, mas não precisava MORAR nela, uma simples visita já bastava. Guardou o comentário para si, afinal Maria gastou muito tempo procurando essa casa que, em suas palavras, "era perfeita para o que os dois queriam!".

Ao descer em frente à casa, Carlos olhou para a rua onde iria viver. Ela não tinha saída, mas era mais espaçosa que um beco, e isso permitia que os pais deixassem as crianças brincando tranquilamente, já que o fluxo de carros era composto apenas de moradores. Todos os vizinhos o cumprimentaram e alguns já convidaram o casal novo para um churrasco ou jantar para se conhecerem melhor. Era realmente uma rua bem aconchegante. Então seu olhar voltou-se para a casa.

Era realmente antiga, felizmente não era como as casas antigas de suas histórias, mas muito bem conservada e recém reformada, e que combinava com o resto da rua. Repentinamente, Maria o abraça falando muito rápido:

- Linda, né amor? Você tem de ver lá dentro... muito espaçosa... quartos suficientes para filhos...- e enquanto prosseguia descrevendo o que estava na sua frente, ia passando pelos cômodos da casa. Olhando de fora, parecia existir muitos mais, todavia o que acontecia era de serem bastante espaçosos. A casa, logicamente, estava desmobiliada, entretanto uma coisa chamou a atenção de Carlos. Uma cortina separava a sala de jantar do que Maria chamou de seu escritório. Era uma cortina muito bem trabalhada e extremamente bonita, bonita demais para ter sido deixada de propósito.

- Querida, e essa cortina? Será que os donos não esqueceram de levá-la?

- Não, a corretora falou que está aí desde sempre. Parece fazer parte da casa como as paredes. Mas se te incomoda... podemos retirá-la daí.

- Não... é até bom para evitar distrações desnecessárias. Realmente é uma linda casa.

A esposa deu um grande sorriso e o abraçou mais uma vez. Começaram então a dura tarefa de desempacotar e organizar a mobília na casa nova. Durante todo o tempo que fizeram isso, a cortina exerceu uma atenção especial sobre Carlos.

Após um mês, e vários churrascos na vizinhança, a vida do casal na nova casa estava plenamente estabelecida. A esposa trabalhava durante todo o dia no fórum da cidade, enquanto que o marido escrevia seu novo romance policial. À noite, jantavam juntos e discutiam sobre os acontecimentos do dia. Ou melhor, ela discutia porque Carlos omitia alguns detalhes do seu dia.

O quarto onde escrevia tinha uma janela de frente para a rua, e frontal a ela ficava a passagem para a sala de jantar, com a cortina separando-a. A mesa do computador dele ficava virada para a parede, para evitar de distrair-se olhando para a rua. No começo parecia impressão, mas sempre que passava um pouco de vento pela janela, Carlos ouvia barulhos, indefinidos no começo mas, com o tempo, ele começou a distinguir vozes também. "São as crianças e pessoas na rua" pensou quando ouviu. Acostumado com esses barulhos, continuou escrevendo e resolveu não perturbar sua esposa com isso, afinal ela estava tão feliz na casa, e ele mesmo já não estava achando tão incômodo. Pelo menos ainda não.

- Hoje eu acabo esse bendito capítulo! - Bradou ele com muito bom humor, e sentou-se para trabalhar. Olhou pela janela e viu que caía uma chuva fina, mas forte o suficiente para manter as pessoas em casa. "Ótimo", pensou, "Hoje escrevo sem os barulhos e vozes". Abriu a janela para arejar o ambiente e começou o trabalho. Súbito, uma corrente de ar adentra o quarto e o som de vozes brigando enche o ambiente. Carlos levanta-se assustado e confuso. Corre para a janela e, assustado, vê que tudo está completamente deserto. Fica olhando para os lados e, em um misto de terror e espanto, ele vê.

No instante que ele olha na direção da cortina, passa mais um pé-de-vento e ela ergue-se, movimento normal de qualquer cortina, mas o que aparece do outro lado não é SUA sala de jantar, mas um salão antigo com uma mobília que remontava o tempo de império. E lá ele enxergou dois pares de pernas, ou melhor, um par de pernas e um vestido muito longo que supunham um outro par, e estava acontecendo uma discussão muito acirrada, quando a voz de sua esposa o tirou do transe:

- O QUE ESTÁS FAZENDO! SOLTE ESSA ARMA!

Sem pensar muito bem, pegou um peso de papel para usar como arma e entrou desesperado na sala de jantar. Estava vazia, e mais, era de novo a sala de jantar de Carlos e Maria, sem tirar nem pôr. "Alucinação", pensa trêmulo, "só posso estar alucinando, mas parecia tão REAL". Tomou um calmante e ficou o resto do dia sem chegar perto das salas com a cortina. Quando a esposa chegou para jantar, decidiu manter o acontecido somente para ele.

No dia seguinte, decidiu que estava sendo bobo e resolveu voltar a escrever. Após algum tempo, recomeçam as vozes. Ele tenta não olhar para a cortina, mas a curiosidade era mais forte. O cenário era o mesmo, mas a situação mudou; agora eram dois vestidos longos sentados em uma espécie de sofá, e uma das mulheres tinha a voz igual à de sua esposa. Deitou no chão para ver e ouvir melhor, mas tudo parou. a cortina tampava a visão da sala, mas as vozes também cessaram. Enquanto pensava nisso, entrou um vento fraco e mexeu um pouco a cortina, insuficiente para ver algo, mas o bastante para mais um fio de conversa invadir o escritório. Então Carlos compreendeu como a coisa funcionava.

O vento era que ativava o que quer que fosse aquilo. Quando ele entrou correndo na sala de jantar, ele tocou na cortina, e esse ato deve ter "quebrado o encanto". Carlos estava mortificado. Sempre escreveu sobre essas coisas, mas nunca imaginou que pudesse acontecer com ele. Com o passar dos dias, o escritor esqueceu sua obra e concentrou-se em descobrir a história por trás da cortina. Como o vento normalmente era fraco, pouco ele via, o que o frustrava um pouco, mas conseguia ouvir bem as conversas. Resumidamente, naquela casa também morou um casal, como eles, mas o casamento fora arranjado e o marido maltratava a garota. E ela já não aguentava mais.

Maria começou a desconfiar que algo estava errado, pois o marido parou de falar sobre o livro durante os jantares, ficando muito tempo absorto e pensativo. Quando ela perguntou o que estava acontecendo, ele simplesmente respondeu:

- Pesquisa.

Após outro mês de "pesquisa", Carlos escutou uma estranha conversa através da cortina. Ao olhar, viu um vestido e um par de pernas desconhecido.

- Prima, foge comigo. Voltamos à minha terra e teu marido jamais descobrirá!

- Ele tem conhecidos no Brasil todo! Nunca ficaremos em paz!

- Tu não podes mais ficar junto a esse crápula! Eu o enfrentarei por ti!

- Não - e começa a chorar baixinho - eu não suportaria.

- Vem cá - e o primo abraça sua amada com ternura.

De repente, um barulho na porta. O marido da garota chegara e nenhum dos dois pombinhos atentou para isso. Carlos, vendo o desastre que iria acontecer, age quase sem pensar. Pega o peso de papel que pensara em usar como arma tempos atrás e arremessa com força pela abertura da cortina. O objeto atravessa séculos  e acerta, com estrondo, a parede próxima ao casal. Eles separam-se com o susto no momento que o marido entrou. "Isso também é um portal!" Pensa assombrado o escritor.

"O que será que aconteceu?". Era a pergunta que assombrava sua mente durante aquele jantar. Sua esposa, preocupada e quase às lágrimas, pergunta o que estava acontecendo. Ele olha para ela e diz:

- Amanhã tente chegar um pouco mais cedo do trabalho, e eu te mostrarei. - e com essas palavras foi dormir.

Passou o dia pensando em como explicar para Maria toda aquela situação. Quando finalmente descobriu uma maneira de parecer menos louco, foi para o escritório esperá-la. Tentou manter a janela fechada, mas o calor era muito forte, até que desistiu de esperar e escancarou a janela. Assim que o fez, uma lufada fortíssima entrou no escritório, derrubando alguns objetos. Súbito, um tiro e um grito desesperado! 

Virou rapidamente, em um estado entre o pânico e o alerta e viu: O vento levantara a cortina quase até o teto e ele, finalmente, teve uma visão completa do cenário. Um homem jovem jazia no chão com um tiro no peito, enquanto que um mais velho avançava na direção de uma mulher, que tentava desesperadamente proteger-se com as mãos. O homem com a arma nas mãos tinha um olhar alucinado e gritava:

- QUERIAS TRAIR-ME?! POIS VAIS PARA O INFERNO JUNTO AO TEU AMADO!

Nesse instante, a mulher abaixa as mãos e ele vê que não só a voz é igual a de sua esposa, mas a própria é um retrato! Então, o mesmo instinto que, semanas atrás, o fez entrar gritando na sala de jantar agiu mais uma vez. Viu que a cortina estava baixando e se atirou rolando pela abertura. Repentinamente se viu no Brasil imperial, no meio de uma cena de crime, trajando chinelas de dedo, bermuda jeans e camiseta da seleção.

O homem, ao ver aquela figura que materializou-se em sua sala, perdeu por um momento o poder de ação. Quando viu essa hesitação, Carlos pulou em cima do sujeito e lutou pela posse da arma, mas o marido traído era mais forte e o arremessou contra a parede. Ficou parado em frente à cortina e disse:

- De onde surgiste, mandrião? Não interessa, terás o mesmo destino dos outros dois!

Apontou a arma cuidadosamente para Carlos, que muito tonto pela pancada na parede, tentou apoiar-se no chão para levantar-se e sentiu o peso de papel nas mãos. Rápido como um raio, arremessou o peso contra seu inimigo e acertou-o na fronte. Esse largou a arma e caiu segurando-se na cortina, arrancando-a de seu suporte.

Ainda trêmulo por causa da luta, aproxima-se do homem e constata sua morte. Escuta alguns soluços atrás dele e vê a garota aproximando-se do primo assassinado. Subitamente, algo vem a sua cabeça: Olha para a cortina destruída e em seguida, para a mulher que era o retrato de sua esposa. Cai de joelhos e solta um grito desesperado.

Maria chega em casa mais cedo, como tinha prometido, mas estranha o silêncio incomum. Dirige-se para o escritório e fica chocada com a cena: A cortina fora rasgada do suporte, parecendo uma cena de luta, mas não estava em lugar algum, nem ela nem os lutadores. Quando entra no ambiente, pisa em alguma coisa dura. Ao olhar o que era, ficou pensando em como uma arma daquele tipo tinha ido parar ali. Correu para chamar a polícia.

Fabiano Machado

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Responsabilidades

            - Paiê! Ajuda com a lição de matemática? Amanhã tem prova.
            - Claro, filho. Espera só acabar o filme que eu vou.
            O pai cochila no sofá, o garoto cochila, no tapete, esperando por ele, e a mãe, que não sabia de nada, conduziu os dois para as camas. Amanhece, todos acordam tarde e saem apressados, pai e filho, para seus afazeres.
            - Caramba! Não tenho a mínima ideia de como resolver essas questões! – desespera-se o garoto.
            Enquanto isso, em uma casa vizinha à escola:
            - Pois é, Dr. Honório, paguei uma investigação particular e creio que a chave para provar minha inocência está nesse relatório.
            O advogado recebe o grande volume de seu cliente, olha com desânimo para a quantidade de páginas e diz:
            - Ótimo, ótimo. Lerei isso assim que chegar em casa, e amanhã estaremos comemorando sua liberdade.
            Sai da casa de seu cliente e, no caminho de casa, para no camelô e compra o filme que tanto queria ver. Chegando em casa, reclama do filho pelo mal desempenho em matemática e não se contém: Joga o relatório em cima da mesa e vai assistir ao filme comprado. Como é seu costume, cochila antes de acabar.
DIÁRIO DE...
JOSÉ F. INOCÊNCIO CONDENADO A 25 ANOS DE RECLUSÃO APÓS DEFESA CONFUSA E INEFICIENTE
            Alguns domingos após o ocorrido, a cidade agita-se Com um referendo onde a população deveria optar se gostaria ou não que o uso de drogas no município virasse crime.
            - Ô Honório, faltam 15 minutos para encerrar! Já foi votar?
            - Ainda não, amor. Só terminar a partida de paciência que eu vou.
DIÁRIO DE...
MEDIDA PELA CRIMINALIZAÇÃO NÃO PASSA POR UM VOTO
            Algum tempo depois, um mecânico entra no hangar de manutenção do aeroporto da cidade e grita:
            -MANEL!
            - DIGA!
            - Já terminou a manutenção daquela turbina?
            - Falta só uma coisinha.
            - Então vai logo terminar, home!
            - Peraí, vou depois do jogo do mengão.
DIÁRIO DE...
ACIDENTE AÉREO FATAL
            Defeito mecânico em turbina causou a queda do jatinho ..., fretado ontem por algumas personalidades de nossa comunidade. Não houve sobreviventes. Dentre as vítimas estava o advogado Honório P. Dante, famoso pelo caso...
Fabiano Machado

Nem tudo que reluz...

            - Mas já acontece há três dias!
            Todos no bar olharam para a mesa onde um dos dois ocupantes levantou a voz tão abruptamente. O outro, meio sem graça, procurou dispersar a atenção das pessoas com gestos típicos indicando que o amigo já bebera demais. Quando consegue, vira-se para o companheiro e diz:
            - Sua Anta! Controle-se!
            - Foi mal, mas não agüento mais! – replicou, com uma expressão extremamente cansada – três dias que não durmo, viando.
            - Então aproveite essa vigília. – falou Fernando, entre sério e risonho – Procure explicações lógicas para isso.
            Luke acenou com a cabeça sem dizer nada. Pouco depois, terminaram sua cerveja e cada um foi para seu lado. Com as palavras de Fernando na cabeça, nosso amigo foi para casa muito a contragosto, mas não podia evitar, afinal era seu lar e tinha de retomá-lo. Comprara o apartamento de dois quartos há pouco mais de um ano e tudo transcorria sem problemas, até poucos dias atrás, quando viu o rosto pela primeira vez.
            Era uma noite de domingo como outra qualquer, melancólica e arrastada, e Luke estava assistindo TV, em um estado entre o sono e a vigília, quando notou um rosto, com olhos brancos e brilhantes, olhando para ele através da janela por trás da televisão. Embora não tivesse uma expressão definida, aquela face passava uma maldade de maneira inexplicável. Desde esse encontro o rapaz ficou com medo de dormir ali.
            Chegou em casa e dirigiu-se rapidamente ao seu posto de guarda nas últimas noites, o sofá, e começou a encarar seu algoz. Tinha a clara impressão que, a cada dia, o rosto ganhava mais expressividade, um rosto demoníaco de fato.
            “Racionalizar”, pensou, “tenho de achar uma solução lógica... Fechar a cortina!” Riu com a ideia, tinha de resolver o problema, e não mascará-lo. Não podia ser uma pessoa, pelo menos não viva, uma vez que o apartamento está no quinto andar e o prédio não possui parapeito ou saída externa de incêndio.
            “Duas opções: ou isso é paranormal ou estou ficando louco!”, e continuou, “Deve ser a primeira, o sonho não pode ser à toa.” Como não conseguia dormir em casa, e o corpo precisa de descanso mesmo contra nossa vontade, Luke começou a dormir no único lugar onde se sentia seguro: no trabalho.
            Além das broncas e advertências, os sonhos também o perturbavam nesses momentos, aliás O sonho o perturbava, pois ele tinha apenas um sonho recorrente: O rosto ganhava um corpo e aqueles olhos dominavam-no. Isso o perturbava demais, deixando-o naquele estado deplorável.
            Enquanto pensava nessas coisas, uma terceira opção surgiu! Olhando fixamente para o rosto desde que chegara, percebeu que o brilho dos olhos variava a intensidade em intervalos irregulares. Pela primeira vez, olhou para além do rosto, através da janela, e notou, trêmulo, que a variação ocorria quando um carro passava na rua. Começando a animar-se, achou um refletor virado para seu prédio, e juntou rapidamente as peças.
            - Claro! – falou para si mesmo, a plenos pulmões – O reflexo das luzes gera o efeito de olhos brilhantes!
            Uma explicação física e normal! Aproximou-se da janela e notou que o rosto parecia, de perto, um defeito no vidro, sem brilhos ou nada assustador. Começou a gargalhar furiosamente; como tinha sido idiota! A expressão do rosto certamente foi gerada pela mente cansada e impressionada pela privação de sono. Comemorou a descoberta com um copo de leite e foi dormir feliz. Amanhã providenciaria a troca de vidro. Apagou tudo e dormiu rapidamente.
            Providenciaria porque a mancha já não estava mais na janela. Na quietude da madrugada, apenas os pontos de luz permaneciam lá. O rosto, com olhos opacos, dirigia-se ao quarto de Luke, com um corpo etéreo e um sorriso zombeteiro em sua expressão malévola.
Fabiano Machado

domingo, 17 de julho de 2011

O motivo

Uma homenagem a todos os colegas que dedicam suas vidas à educação de nossos jovens.

            - Merda!
            Era a palavra que melhor definia a vida de Nicolau naquele momento. Acabara de enfiar o pé até a canela em uma poça de lama no estacionamento da escola municipal onde leciona língua portuguesa. Quem olhasse para aquele homem de estatura mediana e ralos cabelos negros, imaginaria que ele já estava para se aposentar por causa de seu andar curvado e olhos com uma expressão sempre cansada, mas ele acabara de completar 40 anos. A aparência veio como presente por anos trabalhando no ensino público.
            Enquanto caminhava, ou melhor, arrastava-se em direção à sala dos professores, apenas para constatar que a sala de vídeo continuava inoperante, pensava em tudo que se passou desde o momento de sua aprovação no concurso público para o município. Lembrava-se do professor recém-formado em letras, e empolgadíssimo com a perspectiva de fazer a diferença, mas com os anos de descaso do poder público, baixos salários e falta de interesse da maioria dos alunos, acabou entrando no sistema que reina sobre muitos professores: o de seguir com a maré.
            - Por que ainda faço isso? – pensava enquanto dirigia-se à sala de aula – Meus pais tem uma construtora, poderia estar lá com um salário muito melhor, sem levar trabalho para casa e com as contas equilibradas.
            Aula após aula, o dedicado professor tentava passar o conteúdo para os alunos, trazia assuntos atuais para discussão e produção posterior de textos, pagava cópias de material para os alunos comprometendo ainda mais seu orçamento mensal, mas o que recebia em retorno era o descaso dos estudantes. Muito mais preocupados com a final do brasileirão, quem ganha o BBB ou qual o último sucesso rolando nos mp4 da escola. Sem falar nas piadinhas constantes:
            - Esqueceu de lavar a calça, fessor?
            Final de ano, final do último período, o professor Nicolau toma uma decisão drástica: amanhã irá pedir exoneração do cargo! Não precisa disso, 20 anos foram o bastante! Trabalhará com os pais e nunca mais olhará para a educação.
            Após assinar o ponto, começou a caminhar para o estacionamento imaginando uma maneira de entrar no carro sem sujar-se ainda mais quando uma voz chamou.
            - FESSOR! Professor Nicolau, espera!
            Ele olha para trás, e vindo correndo em sua direção estava uma de suas alunas do nono ano. “Provavelmente quer melhorar a nota!” pensou desolado, mas ao olhar melhor viu que era Rita, uma das raras estudantes interessadas nas aulas. Nicolau para e espera. A garota não diminui a velocidade, e choca-se contra o atônito professor em um abraço apertado enquanto fala numa velocidade difícil de acompanhar:
            - Fessor, aiiiiiiiiii, nem acredito! Passei, professor, passei! A prova estava a cara do senhor... a redação então; o senhor trabalhou aquele tema em sala! Parece até que adivinhou! O Senhor tem parentesco com o Harry Potter? Brincadeira, hahaha! Mas falando sério, Professor, se não fosse pelas suas aulas, não sei se conseguiria passar. Nem acredito que vou estudar no IFRN[1]! Brigada, professor.
            Rita deu um beijo no rosto de seu mestre, e saiu tão rápido quanto chegara. Nicolau ficou parado olhando a garota se afastar. Repentinamente um sorriso iluminou seu rosto marcado pelos anos de dedicação à educação. Uma lágrima desceu de seus olhos e ele lembrou o porquê de fazer tudo aquilo: Por mais que muitos não queiram nada e o governo atenda a esse pedido, ele faz o que faz por aqueles que querem e precisam disso para crescer. “fazer a minha parte, uma cabeça de cada vez!” Pensou mais animado.
            Caminhou em direção ao carro deixando para trás a aparência de cansaço e a preocupação com a poça de lama. Entrou no carro e foi direto para casa, precisava planejar suas aulas para o ano vindouro.
Fabiano Machado


[1] Instituto Técnico Federal do Rio Grande do Norte