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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Responsabilidades

            - Paiê! Ajuda com a lição de matemática? Amanhã tem prova.
            - Claro, filho. Espera só acabar o filme que eu vou.
            O pai cochila no sofá, o garoto cochila, no tapete, esperando por ele, e a mãe, que não sabia de nada, conduziu os dois para as camas. Amanhece, todos acordam tarde e saem apressados, pai e filho, para seus afazeres.
            - Caramba! Não tenho a mínima ideia de como resolver essas questões! – desespera-se o garoto.
            Enquanto isso, em uma casa vizinha à escola:
            - Pois é, Dr. Honório, paguei uma investigação particular e creio que a chave para provar minha inocência está nesse relatório.
            O advogado recebe o grande volume de seu cliente, olha com desânimo para a quantidade de páginas e diz:
            - Ótimo, ótimo. Lerei isso assim que chegar em casa, e amanhã estaremos comemorando sua liberdade.
            Sai da casa de seu cliente e, no caminho de casa, para no camelô e compra o filme que tanto queria ver. Chegando em casa, reclama do filho pelo mal desempenho em matemática e não se contém: Joga o relatório em cima da mesa e vai assistir ao filme comprado. Como é seu costume, cochila antes de acabar.
DIÁRIO DE...
JOSÉ F. INOCÊNCIO CONDENADO A 25 ANOS DE RECLUSÃO APÓS DEFESA CONFUSA E INEFICIENTE
            Alguns domingos após o ocorrido, a cidade agita-se Com um referendo onde a população deveria optar se gostaria ou não que o uso de drogas no município virasse crime.
            - Ô Honório, faltam 15 minutos para encerrar! Já foi votar?
            - Ainda não, amor. Só terminar a partida de paciência que eu vou.
DIÁRIO DE...
MEDIDA PELA CRIMINALIZAÇÃO NÃO PASSA POR UM VOTO
            Algum tempo depois, um mecânico entra no hangar de manutenção do aeroporto da cidade e grita:
            -MANEL!
            - DIGA!
            - Já terminou a manutenção daquela turbina?
            - Falta só uma coisinha.
            - Então vai logo terminar, home!
            - Peraí, vou depois do jogo do mengão.
DIÁRIO DE...
ACIDENTE AÉREO FATAL
            Defeito mecânico em turbina causou a queda do jatinho ..., fretado ontem por algumas personalidades de nossa comunidade. Não houve sobreviventes. Dentre as vítimas estava o advogado Honório P. Dante, famoso pelo caso...
Fabiano Machado

Nem tudo que reluz...

            - Mas já acontece há três dias!
            Todos no bar olharam para a mesa onde um dos dois ocupantes levantou a voz tão abruptamente. O outro, meio sem graça, procurou dispersar a atenção das pessoas com gestos típicos indicando que o amigo já bebera demais. Quando consegue, vira-se para o companheiro e diz:
            - Sua Anta! Controle-se!
            - Foi mal, mas não agüento mais! – replicou, com uma expressão extremamente cansada – três dias que não durmo, viando.
            - Então aproveite essa vigília. – falou Fernando, entre sério e risonho – Procure explicações lógicas para isso.
            Luke acenou com a cabeça sem dizer nada. Pouco depois, terminaram sua cerveja e cada um foi para seu lado. Com as palavras de Fernando na cabeça, nosso amigo foi para casa muito a contragosto, mas não podia evitar, afinal era seu lar e tinha de retomá-lo. Comprara o apartamento de dois quartos há pouco mais de um ano e tudo transcorria sem problemas, até poucos dias atrás, quando viu o rosto pela primeira vez.
            Era uma noite de domingo como outra qualquer, melancólica e arrastada, e Luke estava assistindo TV, em um estado entre o sono e a vigília, quando notou um rosto, com olhos brancos e brilhantes, olhando para ele através da janela por trás da televisão. Embora não tivesse uma expressão definida, aquela face passava uma maldade de maneira inexplicável. Desde esse encontro o rapaz ficou com medo de dormir ali.
            Chegou em casa e dirigiu-se rapidamente ao seu posto de guarda nas últimas noites, o sofá, e começou a encarar seu algoz. Tinha a clara impressão que, a cada dia, o rosto ganhava mais expressividade, um rosto demoníaco de fato.
            “Racionalizar”, pensou, “tenho de achar uma solução lógica... Fechar a cortina!” Riu com a ideia, tinha de resolver o problema, e não mascará-lo. Não podia ser uma pessoa, pelo menos não viva, uma vez que o apartamento está no quinto andar e o prédio não possui parapeito ou saída externa de incêndio.
            “Duas opções: ou isso é paranormal ou estou ficando louco!”, e continuou, “Deve ser a primeira, o sonho não pode ser à toa.” Como não conseguia dormir em casa, e o corpo precisa de descanso mesmo contra nossa vontade, Luke começou a dormir no único lugar onde se sentia seguro: no trabalho.
            Além das broncas e advertências, os sonhos também o perturbavam nesses momentos, aliás O sonho o perturbava, pois ele tinha apenas um sonho recorrente: O rosto ganhava um corpo e aqueles olhos dominavam-no. Isso o perturbava demais, deixando-o naquele estado deplorável.
            Enquanto pensava nessas coisas, uma terceira opção surgiu! Olhando fixamente para o rosto desde que chegara, percebeu que o brilho dos olhos variava a intensidade em intervalos irregulares. Pela primeira vez, olhou para além do rosto, através da janela, e notou, trêmulo, que a variação ocorria quando um carro passava na rua. Começando a animar-se, achou um refletor virado para seu prédio, e juntou rapidamente as peças.
            - Claro! – falou para si mesmo, a plenos pulmões – O reflexo das luzes gera o efeito de olhos brilhantes!
            Uma explicação física e normal! Aproximou-se da janela e notou que o rosto parecia, de perto, um defeito no vidro, sem brilhos ou nada assustador. Começou a gargalhar furiosamente; como tinha sido idiota! A expressão do rosto certamente foi gerada pela mente cansada e impressionada pela privação de sono. Comemorou a descoberta com um copo de leite e foi dormir feliz. Amanhã providenciaria a troca de vidro. Apagou tudo e dormiu rapidamente.
            Providenciaria porque a mancha já não estava mais na janela. Na quietude da madrugada, apenas os pontos de luz permaneciam lá. O rosto, com olhos opacos, dirigia-se ao quarto de Luke, com um corpo etéreo e um sorriso zombeteiro em sua expressão malévola.
Fabiano Machado

domingo, 17 de julho de 2011

O motivo

Uma homenagem a todos os colegas que dedicam suas vidas à educação de nossos jovens.

            - Merda!
            Era a palavra que melhor definia a vida de Nicolau naquele momento. Acabara de enfiar o pé até a canela em uma poça de lama no estacionamento da escola municipal onde leciona língua portuguesa. Quem olhasse para aquele homem de estatura mediana e ralos cabelos negros, imaginaria que ele já estava para se aposentar por causa de seu andar curvado e olhos com uma expressão sempre cansada, mas ele acabara de completar 40 anos. A aparência veio como presente por anos trabalhando no ensino público.
            Enquanto caminhava, ou melhor, arrastava-se em direção à sala dos professores, apenas para constatar que a sala de vídeo continuava inoperante, pensava em tudo que se passou desde o momento de sua aprovação no concurso público para o município. Lembrava-se do professor recém-formado em letras, e empolgadíssimo com a perspectiva de fazer a diferença, mas com os anos de descaso do poder público, baixos salários e falta de interesse da maioria dos alunos, acabou entrando no sistema que reina sobre muitos professores: o de seguir com a maré.
            - Por que ainda faço isso? – pensava enquanto dirigia-se à sala de aula – Meus pais tem uma construtora, poderia estar lá com um salário muito melhor, sem levar trabalho para casa e com as contas equilibradas.
            Aula após aula, o dedicado professor tentava passar o conteúdo para os alunos, trazia assuntos atuais para discussão e produção posterior de textos, pagava cópias de material para os alunos comprometendo ainda mais seu orçamento mensal, mas o que recebia em retorno era o descaso dos estudantes. Muito mais preocupados com a final do brasileirão, quem ganha o BBB ou qual o último sucesso rolando nos mp4 da escola. Sem falar nas piadinhas constantes:
            - Esqueceu de lavar a calça, fessor?
            Final de ano, final do último período, o professor Nicolau toma uma decisão drástica: amanhã irá pedir exoneração do cargo! Não precisa disso, 20 anos foram o bastante! Trabalhará com os pais e nunca mais olhará para a educação.
            Após assinar o ponto, começou a caminhar para o estacionamento imaginando uma maneira de entrar no carro sem sujar-se ainda mais quando uma voz chamou.
            - FESSOR! Professor Nicolau, espera!
            Ele olha para trás, e vindo correndo em sua direção estava uma de suas alunas do nono ano. “Provavelmente quer melhorar a nota!” pensou desolado, mas ao olhar melhor viu que era Rita, uma das raras estudantes interessadas nas aulas. Nicolau para e espera. A garota não diminui a velocidade, e choca-se contra o atônito professor em um abraço apertado enquanto fala numa velocidade difícil de acompanhar:
            - Fessor, aiiiiiiiiii, nem acredito! Passei, professor, passei! A prova estava a cara do senhor... a redação então; o senhor trabalhou aquele tema em sala! Parece até que adivinhou! O Senhor tem parentesco com o Harry Potter? Brincadeira, hahaha! Mas falando sério, Professor, se não fosse pelas suas aulas, não sei se conseguiria passar. Nem acredito que vou estudar no IFRN[1]! Brigada, professor.
            Rita deu um beijo no rosto de seu mestre, e saiu tão rápido quanto chegara. Nicolau ficou parado olhando a garota se afastar. Repentinamente um sorriso iluminou seu rosto marcado pelos anos de dedicação à educação. Uma lágrima desceu de seus olhos e ele lembrou o porquê de fazer tudo aquilo: Por mais que muitos não queiram nada e o governo atenda a esse pedido, ele faz o que faz por aqueles que querem e precisam disso para crescer. “fazer a minha parte, uma cabeça de cada vez!” Pensou mais animado.
            Caminhou em direção ao carro deixando para trás a aparência de cansaço e a preocupação com a poça de lama. Entrou no carro e foi direto para casa, precisava planejar suas aulas para o ano vindouro.
Fabiano Machado


[1] Instituto Técnico Federal do Rio Grande do Norte

domingo, 12 de junho de 2011

O Retorno

,

            As pessoas que viviam próximas àquela casa, outrora tão limpa e bem cuidada, estavam muito preocupadas com o total descaso apresentado agora. O mato crescia livremente no, pode-se dizer assim, jardim e a pintura das paredes estava suja e descascando. A preocupação dos vizinhos seria muito maior se tivessem como olhar o interior daquilo que já foi um lar.
            Embora as luzes da casa, todas, estivessem constantemente acesas a sujeira e os bichos que rondavam por ali davam uma atmosfera lúgubre ao lugar. Parecia que ninguém entrava ali há anos. Mas alguém vivia lá, uma pessoa que passou por um terror indizível poucos meses atrás e desde então dedica todo seu tempo na busca de uma maneira de destruir o causador de seu trauma.
            Qualquer um que olhasse Guilherme hoje ficaria muito assombrado com a visão. Cabelo grande, barba por fazer e roupa suja, dando a impressão que irá desmanchar-se a qualquer minuto, completamente diferente do homem alegre e bem resolvido de antes. No lugar de seu constante sorriso apareceu um olhar vidrado, de uma mente em constante luta, inglória e sem esperanças, para manter-se sã. Ele passava o dia sentado na escrivaninha, de frente para o computador e completamente cercado por anotações e livros antigos, alguns mais antigos que nossa história e escritos por alguém, ou alguma coisa, há muito desaparecida, e falando sobre rituais, magias e, especialmente, criaturas antigas.
            Em toda sua pesquisa, descobriu que a coisa responsável pela necessidade de um tapa-olho vivia, por falta de um termo melhor, no que hoje chamamos de leste europeu, e a maioria das referências a ela estavam em antigos livros russos. Os Mujiques, camponeses russos, passaram gerações lutando contra essas coisas, mas infelizmente, devido a sua baixa escolaridade, pouquíssimas coisas sobre o assunto foram escritas. Apenas alguns trechos de um antigo diário davam pistas sobre esse período.
             Вурдалак[1]
                смерти его собственной кровью.[2]
                ум видит, что он хочет.[3]
                Passaram-se dias desde o momento que o rapaz achou essas anotações e ele olhava fixamente para elas, tentando decifrar o que o infeliz nobre russo queria dizer com seus misteriosos escritos. O primeiro era bem óbvio, devido aos acontecimentos presenciados e deduzidos de seu último encontro com o Vurdalak, mas os outros dois estavam tirando seu resto de sono, até que o destino resolveu intervir.
            Um enorme gato entrou rapidamente pela janela, provavelmente tentando pegar alguma das ratazanas que dividiam a casa com Guilherme, e passou como um furacão pela escrivaninha, fazendo voar as anotações. O pesquisador levantou-se com uma fúria anormal, possivelmente querendo matar o pobre bichano, mas ao virar-se, seu olhar recaiu sobre a parede oposta à do computador, onde um facão estava pendurado em um prego, a mesma arma que ele utilizou para ferir o vampiro.
            Naquela ocasião, a arma estava enferrujada, com um tom meio avermelhado, mas agora, com a luz da manhã refletindo na lâmina, era a cor negra que aparecia: O sangue, ou que quer que fosse, estava impregnado no facão. Um sorriso iluminou a face do rapaz e ele começou a pular e dançar pelo aposento, sob o olhar desconfiado do gato.
            - Claro! – gritou ele dirigindo-se ao gato: - “A morte de seu próprio sangue”!
            - AHAHAHAHAHAHAH! – Como fui burro! – AHAHAHAHAH!
            Então ele parou de pular e falou mais calmamente para o gato:
            - Para matar um vurdalak, é necessário utilizar uma arma embebida em seu próprio sangue! Esse facão vai levar-me à vitória. Sabe, vocês gatos eram considerados guardiões do mundo dos mortos pelos antigos egípcios. – Fez um carinho no gato e continuou – Talvez os antigos deuses tenham resolvido ajudar, já que o nosso, aparentemente, não se importa mais.
            Cuidadosamente retirou a arma da parede e colocou dentro de uma mochila, enquanto ia pensando “Agora é só pesquisar mais um pouco e descobrir qual o melhor momento para matar essa coisa”. Voltou ao computador com a mente mais aliviada, pensando que talvez hoje pudesse sair e tomar uma cerveja com calabresa frita, tentar uma noite normal em muitos meses. Ao colocar os olhos na tela do computador, esses pensamentos sumiram e o terror voltou à sua face: O casarão maldito foi colocado em um leilão!
            “Como eles podem fazer isso?” – pensava enquanto andava nervosamente pela sala, chutando ratos e restos de comida. – “Aquela coisa vai matar muitos inocentes.” – “Não posso permitir que aconteça tal coisa!”
            Subitamente para olhando fixamente para o local onde jazia o facão “que se dane a pesquisa” pensou enquanto pegava a mochila surrada “hoje a criatura morre...” e um brilho mórbido passou em seu olhar “... ou eu!” um pequeno sorriso surge em sua face e algo que poderíamos chamar de alívio também “de qualquer forma acaba hoje”.
            Ao passar pela sala em direção à porta, vê, de relance, um completo estranho olhando para ele! Rapidamente leva a mão à mochila, mas percebe que o estranho era apenas sua imagem, após meses de reclusão e pesquisa exaustiva e obsessiva, refletida no espelho.
            - Tenho de dar um jeito nisso! – falou para ninguém em especial.
            Tomou o primeiro banho em semanas, Penteou o cabelo e fez a barba, e colocou sua roupa menos suja. Quando passou novamente em frente ao espelho, por um breve momento, o jovem orgulhoso de outrora reaparecera! Logo a mente perturbada reassumiu o controle e um homem a beira do desequilíbrio partiu para enfrentar o inimaginável.
            A caminhada para o casarão foi completamente diferente da outra vez, nada de observar as coisas que aconteciam à sua volta, apenas uma imagem ocupava sua mente e ela não era nada agradável. Quando se deu conta, estava parado em frente à casa maldita e um terror tomou conta dele: A casa estava com as luzes acesas!
            - MEU DEUS! – Gritou – Alguém está lá dentro!
            Saca o facão da mochila e corre em direção a porta, que se abre assim que Guilherme toca na maçaneta. Ele entra de supetão na grande sala iluminada e vê: Um rapaz, com não mais do que vinte e sete anos, possivelmente o responsável do leilão pela casa, abraçado a uma... coisa que tinha forma humana, mas nenhum traço que identificasse um rosto ou se era macho ou fêmea. E suas mãos, se é que eram mãos, tinham dedos compridos e finos, que lembravam raízes, que pareciam cravados nas costas do jovem.
            “Como é possível ele abraçar...” começou a pensar quando se lembrou do fragmento do diário, a mente vê o que deseja, e a resposta ficou clara: “é um ser mimético”, a última peça encaixava-se, “ele assume a forma que mais nos agrada para seduzir-nos, como fazem os vampiros dos contos, só que esse é real!” A criatura percebe sua presença e sente o cheiro de seu sangue no facão. Afasta-se e o leiloeiro vira-se encarando aquele estranho segurando um facão em uma das mãos. Guilherme escuta em sua mente uma voz feminina dizendo:
            - Socorro! Esse é um ex-namorado que jurou matar-me se não ficasse com ele!
            Guilherme arregala os olhos enquanto vê o jovem, com um olhar alucinado, partir para cima dele com um candelabro de ferro que tinha pego de uma mesa de canto, e ataca com golpes aparvalhados, mas mortais se atingissem o canto certo. E todos eram dirigidos à sua cabeça. O pesquisador esquivou-se duas vezes enquanto pedia, gritava desesperadamente para que o rapaz parasse, que aquilo era um monstro, quando um dos golpes acertou seu ombro, causando uma dor lancinante, ao mesmo tempo, ele escutou uma risada malévola em sua mente.
            Foi aí, exatamente aí, que a sanidade perdeu sua luta inglória! O rosto de Guilherme anuviou-se e com um movimento rápido, cortou a jugular do leiloeiro com a lâmina destinada à criatura. A risada mental parou, mas nosso louco amigo olha para o corpo caído a seus pés e começa a rir descontroladamente, depois a chorar, e foi assim; rindo e chorando, e a loucura queimando no olhar, que ele partiu correndo em direção à criatura. O facão girava à esmo, comandado por uma fúria insana a qual o vurdalak não foi capaz de conter.
Ao final de alguns segundos, uma massa disforme jazia no chão e aquilo que já fora um homem estava parado sobre ela, com um ombro deslocado e vários ferimentos pelo rosto e braços. Nada do que ele foi sobreviveu àquele dia, sua mente estava um turbilhão incompreensível: era um herói; era um assassino; o que ele era? Não sabia, apenas sabia que muitas outras coisas sobrenaturais assolavam sua cidade, e que uma delas ficava sobrevoando a ponte, e que somente ele poderia mata-la.
Correu em direção à ponte para dar fim a mais esse terror, e seu plano era simples: quando a coisa, que era invisível, passasse por baixo da ponte, ele pularia e a agarraria em pleno ar, matando-a em seguida. “É um excelente plano!” pensou com um olhar alucinado, enquanto sumia gargalhando no meio da noite.

Fabiano Machado


[1] Vampiro
[2] A morte de seu próprio sangue.
[3] A mente vê o que deseja.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A visão

                - Você está delirando! Anda cheirando ou fumando alguma coisa? – Disse para mim Rodrigo com uma expressão entre divertida e preocupada.
                - Tenho plena convicção do que vi – respondo – Semana passada tinha um sujeito parado na frente do velho casarão olhando fixo para ele. Ele entrou na casa, vigiei a noite toda e o cara não saiu. Temos de entrar lá para investigar!
                Rodrigo é um de meus amigos mais antigos, e um dos que mais me identifico, por isso marquei essa conversa no bar da esquina de nossas casas para relatar o que vi no sábado passado. Achei que ele acreditaria e me apoiaria na investigação, mas olhando agora para a expressão divertida em seu rosto, tenho certeza de que meu pensamento foi equivocado.
                - Olha – falou Rodrigo de uma maneira mais séria – Crescemos escutando histórias estranhas sobre aquela casa, não sei se são verdadeiras, mas sei de uma coisa: - e se inclinou sobre a mesa, aproximando-se de mim e baixando o tom de voz. – Não quero descobrir a verdade. Se você realmente viu o que viu, é mais uma razão para NÃO entrarmos lá.
                Encosto-me na cadeira e bebo o resto da minha cerveja, pensando no que vi e no que ele acabara de falar. Meu amigo se despede, deixa a parte dele da conta e fala com uma seriedade que normalmente não faz parte dele:
                - Em hipótese alguma entre naquele lugar.
                Enquanto olho o movimento no pequeno bar, apenas três mesas e todas com moradores da rua, penso na cena que vi na outra semana. O rapaz parecia realmente perturbado parado ali na frente. Involuntariamente viro a cabeça em direção à casa. À medida que vai anoitecendo, a atmosfera daquele lugar vai ficando mais lúgubre e o pensamento de entrar lá vai ficando mais tênue, mas do nada vem um pensamento: Claro, o problema é a noite. Entrando lá de manhã, não deve haver problema algum!
                Então estava decidido, sábado pela manhã entrarei no casarão e descobrirei o que aconteceu com aquele rapaz. Vou para casa satisfeito com minha solução e durmo ansioso pelo dia.
                O sábado amanhece majestoso! Nenhuma nuvem no céu e o sol brilhando com toda sua força e luz. Enquanto me preparo para minha pequena expedição, começo a lembrar do estranho sonho que tive na noite passada. Eu estava em um quarto antigo, parado na porta, quando vi um casal abraçando-se. Reconheci logo as roupas do rapaz que vi entrando no casarão, mas a mulher estava completamente nua, beijando o pescoço dele. Repentinamente, ele vira o rosto e vejo uma dor enorme, que não condizia com a cena, então voltei meu olhar para a mulher. Ela sorria para mim, mas aquele sorriso tinha algo de maléfico, que não era deste mundo. Aí vi as mãos.
                Os dedos pareciam galhos retorcidos que entravam nas costas do sujeito, a figura de raízes veio à minha mente, e enquanto eu olhava para aquela cena, o rapaz virou a cabeça mais uma vez e balbuciou:
                - NÃO VENH...
                Acordei meio impressionado, mas agora a sensação passou. Começo a andar em direção à casa, observando a rua acordar no sábado. Pessoas indo fazer compras cedo, para evitar filas, outras indo trabalhar no comércio, e mais algumas fazendo tarefas banais, como lavar o carro e varrer a calçada, coisa que nunca entendi a utilidade. Ao passar perto da casa de Rodrigo, vejo que o carro não está lá. Deve ter ido às compras com a esposa. Melhor, suas palavras são a única coisa que me faz hesitar um pouco, e acho que se o encontrasse, ele acabaria me convencendo a não ir.
                Atravesso rapidamente o que um dia já foi um jardim e fico parado em frente à porta. Estava aberta, prova de que não estava ficando louco. Solto um suspiro de alívio, esboço um sorriso e entro na casa.
                A sala de estar é impressionante! Apesar dos móveis estarem cobertos por lençóis velhos e sujos, as formas demonstram que são trabalhados artesanalmente e muito caros. Como é que deixam uma fortuna dessa abandonada? Continuo explorando a sala, que tem uma lareira num dos cantos, estranho em um país como o Brasil, e muitos quadros na parede.
                Os quadros devem ser da família que possuiu a casa, as histórias falam que eram muitos ricos, mas foram definhando até que o último morreu sem deixar herdeiros. Observo os rostos nos quadros, e as roupas, e é interessante como se nota a passagem no tempo através delas, mas... espere um pouco. Essa mulher... é a mesma que apareceu no meu sonho! E não é só isso, ela aparece em vários quadros, em várias épocas diferentes. Impossível, devem ser descendentes, mas a semelhança é incrível.
                O sonho! O quarto deve ser aqui, lá em cima. Dirijo-me para o segundo andar, subindo pela velha escada que rangia a cada passo que dava. “Parece um conto de Poe”, penso de modo divertido, “e se fosse uma história de terror, olharia para trás e alguma coisa estaria cortando meu caminho para a saída”. Após pensar isso, sinto um arrepio na nuca e olho, meio que sem vontade, para trás e vejo-a no pé da escada.
                A mulher do meu sonho, ou pesadelo, estava lá, olhando para mim com aquele sorriso malévolo, e com os braços abertos. Eu só consigo olhar para os dedos e um terror insano toma conta de mim: quero gritar, chorar, correr, socar, pular, mas não faço nada. Apenas fico parado olhando para a criatura.
                Entre todos os sentimentos ocorrendo neste momento, um fala mais alto: CORRA! Volto as costas para a escada e começo a correr, não me viro, mas tenho certeza que a criatura está vindo logo atrás. À minha frente, um corredor se estende com todas as portas fechadas, com exceção de uma, e é para ela que me dirijo. Entro e fecho a porta, procuro em toda ela, mas não vejo nada que a tranque. Ando lentamente para trás, e piso em alguma coisa. Olho para baixo, e vejo horrorizado, os restos mortais do homem que vi entrando aqui. Parecia que algo tinha sugado todos os fluídos de seu corpo, e pela expressão do que um dia foi seu rosto, foi muito doloroso.
                De repente, a porta abre com um estrondo e lá estava ela: Os dedos não existiam mais, eram garras longas e finas, com a terrível função que acabara de descobrir; seu rosto, belo ao pé da escada, era agora uma coisa estranha, parecida com um inseto; mas a maldade que emanava era a mesma e eu sei que, por baixo daquela careta monstruosa, ela está sorrindo. Olho para trás e não penso duas vezes: Corro em direção à janela fechada e pulo através do vidro: “antes morrer na queda do que sendo comida desse bicho”.
                Mas ao atravessar o vidro, algo muito estranho acontece: Parei no ar! Nada parece se mexer, vejo o vidro começando a rachar por causa do meu peso, um caco que já vem voando em direção ao meu olho direito, mas tudo está parado no ar, inclusive eu. “Já ouvi dizer que a morte é estranha, mas isso é ridículo”, penso tentando racionalizar a situação, então começo a ouvir vozes.
                Estranhamente, consigo me movimentar naquele estado de “parada temporal”, e me viro em direção ao quarto. A criatura já não estava lá, mas não é só isso, o quarto tinha aspecto de novo! Os móveis são antigos, acho que metade do século passado, mas com aparência de novos. Dois rapazes entram no quarto e começam a conversar:
                - Esta noite ela vai me pegar – disse o com a aparência mais nova.
                - Conversa! Por que a esposa de papai viria lhe pegar? – responde o mais velho, provavelmente seu irmão.
                - Ela não é humana! Eu vi ela matando Bernadete.
                - Bernadete foi embora fugida porque roubou jóias de Patrícia.
                - Isso é o que ela diz – respondeu o menor – mas eu vi o que ela fez, só não sei o que fez com o corpo.
                - Não fale asneiras – fala o maior – Ela apenas vem ver como você está, porque gosta de você.
                - Eu tive sorte porque você e papai chegaram aqui na outra noite, mas ela não vai me pegar desprevenido, veja.
                E os dois começam a andar em minha direção e abrem a janela, quer dizer, no tempo deles, porque continuo vendo o vidro e a armação fechados na minha frente. Olho para minha direita e vejo o que o garoto está mostrando para o irmão.
                - Coloquei essa corda aqui hoje pela manhã, fala orgulhoso, quando ela entrar pelo quarto eu saio pela janela e me penduro nela, e ali...
                O garoto aponta para um buraco na parede da casa, próximo à corda.
                - Eu coloquei um facão para dar um fim nessa desgraçada! Se ela entrar hoje, será a última vez que ela ataca alguém.
                Após falar isso, a imagem dos dois começa a desvanecer, e subitamente fico triste. Como a criatura ainda está aqui, seu plano deve ter dado errado... Espere! Isso, essa parada no tempo – o vidro começa a estalar, e sinto o meu corpo começando a mover-se – deve ser esse garoto tentando me ajudar, querendo vingança! Tudo começa a acontecer muito rápido, O caco entra no meu olho, a dor é alucinante, atravesso o vidro sentindo minha pele ser cortada, estico meu braço direito para o lado, e sinto a corda na palma de minha mão.
                Agarro com força rezando para que aquela corda de meio século aguente meu peso. Sinto um tranco no braço e minha queda é interrompida com a batida de meu corpo contra a parede da casa. Rapidamente, seguro a corda com a mão esquerda e enfio a outra no buraco na parede e puxo o facão que lá jazia. Olho para a janela e vejo a criatura esticando suas garras em minha direção. Faço um giro rápido com o facão, ao mesmo tempo em que grito de dor e ódio, e atinjo uma de suas mãos, decepando três de seus “dedos”. A coisa solta um uivo lancinante e retorna para dentro da casa, enquanto que eu deixo o facão cair no terreno da propriedade e desço pela corda o mais rápido possível.
                O sol está próximo do seu ápice quando chego extenuado ao portão do casarão. Qualquer um que me visse naquele momento, com as roupas rasgadas, sangrando e com um olho vazado, segurando um facão enferrujado melado com um sangue fétido, sairia correndo pensando ter visto um assassino em série, digno de “Sexta-feira 13”. Devo estar enlouquecendo porque esse pensamento me divertiu, entretanto as ruas estavam vazias devido ao calor intenso.
                Olho novamente para a casa e penso em todos aqueles quadros. “Quantas vidas essa coisa não destruiu?” e lembro, com tristeza, do garoto que me salvou da morte certa. Tentou avisar a todos e acabou morto também. Olho para o facão: “Se ela sangra, é porque pode ser morta, e é isso que vou fazer. Vou estudar a história dessa família e vou descobrir como matar essa criatura”. Começo a caminhar em direção de casa, pensando em como e onde começar essa missão.

Fabiano Machado