Nunca deveria ter voltado aqui, muito menos entrado nessa casa... que fedor é esse? Imagino o que os moradores antigos guardavam nesse armário fedorento... mais passos... eles estão me enlouquecendo... fico imaginando quando a criatura, ou seja lá o que for, passar na frente da brecha na porta.
“O casarão do diabo” era o nome que dávamos a esse lugar quando crianças. Uma mansão velha e muito grande, cercada por um jardim morto e retorcido, e com aquelas duas janelas no terceiro andar que pareciam olhos maléficos amaldiçoando quem passasse pela rua.
Éramos extremamente corajosos, ou idiotas, e aceitamos o desafio da outra turma de entrar na casa à noite e trazer um objeto de lá. Ás 20 horas entramos no jardim decididos e confiantes, afinal éramos oito “heróis” e andar em grupo aumenta muito a coragem de alguém. Foi quando nos aproximamos que Bocão gritou apontando para uma das janelas do segundo andar, e o que vimos assombra nossos pesadelos até hoje.
Uma mão segurava uma cortina afastando-a, como que se alguma coisa olhasse para nós. Digo “alguma coisa” porque aquela mão, embora me faltem palavras para descrevê-la, não podia pertencer a um ser humano. A última coisa que lembro, antes de sair em disparada, foi a cortina balançando após ser liberada pela garra... sim, garra é uma boa palavra para descrever aquilo. Então... mais passos, mas agora parecem afastar-se.
Então resolvi afastar-me de tudo que não fosse desse mundo material. Estudei, graduei-me e dediquei minha vida a provar a inexistência de algo além do que vemos sem “dons especiais”. Estava indo bem, tinha meu emprego na universidade e minha vida consistia das viagens casa – trabalho e de idas, aos abados somente, ao “bar da castanhola” encontrar os amigos de infância e não falar sobre o episódio do casarão. Minha vida era toda planejada, até que algo inesperado aconteceu.
Sabrina era uma garota linda, extrovertida e que adorava uma aventura improvisada, exatamente tudo o que eu não era. A paixão mútua foi inevitável, e ocorreu no momento que chamei seu nome durante a chamada da aula de física avançada. Esqueci de falar que ela era altamente intelig... O que foi isso?
Apenas impressão... mas com Sabrina aprendi a soltar-me um pouco mais, a deixar o pessimismo de lado, mas nunca consegui ser espontâneo como ela, jamais consegui fazer algo, especialmente viajar, sem um planejamento. Isso gerou algumas pequenas brigas, mas nada sério demais até que ela venceu aquele maldito concurso.
A universidade fez uma competição de projetos para levar o melhor aluno de cada curso de ciências exatas para a Suíça, visitar as instalações do super condutor. Ela foi uma das vencedoras, até aí nenhuma surpresa, entretanto a viagem estava marcada para dali a dois dias. Aí começou nossa última briga.
- Você é muito cabeça dura, Rafael! – gritou ela – custa, uma vez na vida, sair da mesmice?
- Não posso, coração. – respondi sem convicção – Tem minhas aulas, os orientandos... não posso sair assim.
Ela apenas balançou a cabeça, arrumou a mochila e saiu pela porta. Foi a última vez que a vi. O avião que a turma de vencedores, nata intelectual de nosso campus, viajou entrou para a estatística das pouquíssimas aeronaves que caem, e que mostra como é seguro viajar nelas. A cerimônia fúnebre foi pequena e discreta, afinal não existia corpo para ser enterrado. Logo após o “enterro” fiquei me martirizando por não ter ido junto, todavia logo racionalizei que nada poderia fazer além de segurar sua mão. Funcionou por alguns momentos, mas logo veio o pensamento de “como seria bom ter estado com ela nos momentos finais”. A partir daí começaram os sonhos.
Voltei a sonhar com aquela horrível cena de minha juventude, mas era Sabrina que estava na janela, com um sorriso extremamente convidativo. Isso se repetiu por um ano e praticamente transformou-me em um zumbi devido ao cansaço. Ao ir para o bar da castanhola, todos notaram meu abatimento e perguntaram o que estava havendo. Relutei em responder, para não tocar no assunto proibido, mas acabei cedendo. Silêncio sepucral na mesa, quebrado apenas por André:
- Para o bem ou para o mal, você tem de voltar lá. Sua mente é muito científica e só vai sossegar quando comprovar que não há nada lá. – fez uma pausa e, falando mais baixo e sem olhar nos meus olhos, acrescentou – só não peça para ir com você.
Aquilo deixou todos sóbrios e indispostos para continuar no bar. No caminho para casa, vi a logicidade da proposta e resolvi colocar em prática. Peguei o desvio e dirigi em direção à minha cidade natal. Entrei em um estado de torpor, não sei se devido ao cansaço, mas quando voltei a mim estava parado na mesma posição de trinta anos atrás, mas desta vez estava sozinho, e as cortinas não se mexeram.
Olhei ao redor e o jardim estava, se é possível, mais morto do que nunca, e gerava uma atmosfera agonizante. Andei vagarosamente em direção a casa, sem ao menos saber direito o que vim buscar aqui. Logo a mente racional começou a trabalhar: “se a porta estiver trancada?”; “pode ter um vigia”... mas no momento que toquei na maçaneta, a porta abriu com um rangido desesperado. Sem hesitar, entrei no meu pesadelo de infância.
Demorou um tempo para meus olhos acostumarem-se à falta de luz. Na minha impetuosidade (quem diria?) esqueci de trazer uma lanterna ou coisa parecida. Comecei a andar pela casa, por sorte era noite de luar e a casa tem grandes janelas, Olhando os móveis antigos e empoeirados e os retratos de pessoas seculares nas paredes.
Repentinamente escutei o que parecia uma risada, mas a voz não podia ser humana. Imediatamente a “garra” voltou à minha mente. Comecei a pisar mais forte para abafar qualquer barulho com meus pés, enquanto pensava continuamente “o que vim buscar aqui?”
“EU!”, foi sussurrado em meu ouvido. Corri feito um louco pela casa, até que cheguei na cozinha e entrei no que parecia um pequeno armário, fechando a porta apenas parcialmente. Embora tenha parado de correr, o ruído de passos fortes no assoalho velho continuou por um bom tempo.
Revendo a situação, percebo que os passos não estão vindo para cá, parecem estar subindo e descendo a escada continuamente, como que mostrando o caminho.
Ora, cheguei até aqui e vou em frente! Como cientista tenho de investigar até o fim. Saio resoluto do armário e vou em direção à sala de entrada. Olho para a velha e larga escadaria, mas os passos cessaram completamente. Começo a subir vagarosamente, sempre esperando ver algo a cada metro que ando no corredor. A cada passo meu, a escada range melancolicamente, como que anunciando minha chegada ao segundo andar.
Um grande corredor estende-se a minha frente com várias portas fechadas e que pareciam estar lacradas com o pó dos anos. Começo a pensar onde ir a seguir quando a terceira porta do lado esquerdo abre-se devagar com um ruído enferrujado das dobradiças seculares, emanando uma claridade estranha do interior do quarto. Faço um rápido cálculo e percebo que “a janela” pertence àquele quarto.
Corro ou entro? Dissipo rápido essa dúvida, não posso viver sem dormir, pior, não posso viver sem saber! Respiro fundo o ar impregnado e entro no quarto. Lá dentro vejo que as cortinas estão completamente abertas, deixando entrar a luz do luar, mas essa não foi a claridade que invadiu o corredor. Ao olhar por sobre meu ombro, vejo Sabrina, vestida apenas com uma luz esverdeada que parece sair... dela mesma! Ela sorri e abre os braços para mim.
Isso não pode ser real! Penso, todo meu corpo prepara-se para fugir, embora algo em mim queira desesperadamente ficar. Então ela fala como num sussurro:
- Por que você é tão cabeça dura? Custa, uma vez na vida, sair da mesmice?
Lágrimas inundam meus olhos e caminho para ela totalmente entregue; sinto seu abraço gelado e o calor de meu corpo indo embora. Enquanto a escuridão toma conta de minha mente, sinto as mãos de Sabrina em minhas costas tomarem a forma de... garras.
Fabiano Machado
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