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As pessoas que viviam próximas àquela casa, outrora tão limpa e bem cuidada, estavam muito preocupadas com o total descaso apresentado agora. O mato crescia livremente no, pode-se dizer assim, jardim e a pintura das paredes estava suja e descascando. A preocupação dos vizinhos seria muito maior se tivessem como olhar o interior daquilo que já foi um lar.
Embora as luzes da casa, todas, estivessem constantemente acesas a sujeira e os bichos que rondavam por ali davam uma atmosfera lúgubre ao lugar. Parecia que ninguém entrava ali há anos. Mas alguém vivia lá, uma pessoa que passou por um terror indizível poucos meses atrás e desde então dedica todo seu tempo na busca de uma maneira de destruir o causador de seu trauma.
Qualquer um que olhasse Guilherme hoje ficaria muito assombrado com a visão. Cabelo grande, barba por fazer e roupa suja, dando a impressão que irá desmanchar-se a qualquer minuto, completamente diferente do homem alegre e bem resolvido de antes. No lugar de seu constante sorriso apareceu um olhar vidrado, de uma mente em constante luta, inglória e sem esperanças, para manter-se sã. Ele passava o dia sentado na escrivaninha, de frente para o computador e completamente cercado por anotações e livros antigos, alguns mais antigos que nossa história e escritos por alguém, ou alguma coisa, há muito desaparecida, e falando sobre rituais, magias e, especialmente, criaturas antigas.
Em toda sua pesquisa, descobriu que a coisa responsável pela necessidade de um tapa-olho vivia, por falta de um termo melhor, no que hoje chamamos de leste europeu, e a maioria das referências a ela estavam em antigos livros russos. Os Mujiques, camponeses russos, passaram gerações lutando contra essas coisas, mas infelizmente, devido a sua baixa escolaridade, pouquíssimas coisas sobre o assunto foram escritas. Apenas alguns trechos de um antigo diário davam pistas sobre esse período.
Passaram-se dias desde o momento que o rapaz achou essas anotações e ele olhava fixamente para elas, tentando decifrar o que o infeliz nobre russo queria dizer com seus misteriosos escritos. O primeiro era bem óbvio, devido aos acontecimentos presenciados e deduzidos de seu último encontro com o Vurdalak, mas os outros dois estavam tirando seu resto de sono, até que o destino resolveu intervir.
Um enorme gato entrou rapidamente pela janela, provavelmente tentando pegar alguma das ratazanas que dividiam a casa com Guilherme, e passou como um furacão pela escrivaninha, fazendo voar as anotações. O pesquisador levantou-se com uma fúria anormal, possivelmente querendo matar o pobre bichano, mas ao virar-se, seu olhar recaiu sobre a parede oposta à do computador, onde um facão estava pendurado em um prego, a mesma arma que ele utilizou para ferir o vampiro.
Naquela ocasião, a arma estava enferrujada, com um tom meio avermelhado, mas agora, com a luz da manhã refletindo na lâmina, era a cor negra que aparecia: O sangue, ou que quer que fosse, estava impregnado no facão. Um sorriso iluminou a face do rapaz e ele começou a pular e dançar pelo aposento, sob o olhar desconfiado do gato.
- Claro! – gritou ele dirigindo-se ao gato: - “A morte de seu próprio sangue”!
- AHAHAHAHAHAHAH! – Como fui burro! – AHAHAHAHAH!
Então ele parou de pular e falou mais calmamente para o gato:
- Para matar um vurdalak, é necessário utilizar uma arma embebida em seu próprio sangue! Esse facão vai levar-me à vitória. Sabe, vocês gatos eram considerados guardiões do mundo dos mortos pelos antigos egípcios. – Fez um carinho no gato e continuou – Talvez os antigos deuses tenham resolvido ajudar, já que o nosso, aparentemente, não se importa mais.
Cuidadosamente retirou a arma da parede e colocou dentro de uma mochila, enquanto ia pensando “Agora é só pesquisar mais um pouco e descobrir qual o melhor momento para matar essa coisa”. Voltou ao computador com a mente mais aliviada, pensando que talvez hoje pudesse sair e tomar uma cerveja com calabresa frita, tentar uma noite normal em muitos meses. Ao colocar os olhos na tela do computador, esses pensamentos sumiram e o terror voltou à sua face: O casarão maldito foi colocado em um leilão!
“Como eles podem fazer isso?” – pensava enquanto andava nervosamente pela sala, chutando ratos e restos de comida. – “Aquela coisa vai matar muitos inocentes.” – “Não posso permitir que aconteça tal coisa!”
Subitamente para olhando fixamente para o local onde jazia o facão “que se dane a pesquisa” pensou enquanto pegava a mochila surrada “hoje a criatura morre...” e um brilho mórbido passou em seu olhar “... ou eu!” um pequeno sorriso surge em sua face e algo que poderíamos chamar de alívio também “de qualquer forma acaba hoje”.
Ao passar pela sala em direção à porta, vê, de relance, um completo estranho olhando para ele! Rapidamente leva a mão à mochila, mas percebe que o estranho era apenas sua imagem, após meses de reclusão e pesquisa exaustiva e obsessiva, refletida no espelho.
- Tenho de dar um jeito nisso! – falou para ninguém em especial.
Tomou o primeiro banho em semanas, Penteou o cabelo e fez a barba, e colocou sua roupa menos suja. Quando passou novamente em frente ao espelho, por um breve momento, o jovem orgulhoso de outrora reaparecera! Logo a mente perturbada reassumiu o controle e um homem a beira do desequilíbrio partiu para enfrentar o inimaginável.
A caminhada para o casarão foi completamente diferente da outra vez, nada de observar as coisas que aconteciam à sua volta, apenas uma imagem ocupava sua mente e ela não era nada agradável. Quando se deu conta, estava parado em frente à casa maldita e um terror tomou conta dele: A casa estava com as luzes acesas!
- MEU DEUS! – Gritou – Alguém está lá dentro!
Saca o facão da mochila e corre em direção a porta, que se abre assim que Guilherme toca na maçaneta. Ele entra de supetão na grande sala iluminada e vê: Um rapaz, com não mais do que vinte e sete anos, possivelmente o responsável do leilão pela casa, abraçado a uma... coisa que tinha forma humana, mas nenhum traço que identificasse um rosto ou se era macho ou fêmea. E suas mãos, se é que eram mãos, tinham dedos compridos e finos, que lembravam raízes, que pareciam cravados nas costas do jovem.
“Como é possível ele abraçar...” começou a pensar quando se lembrou do fragmento do diário, a mente vê o que deseja, e a resposta ficou clara: “é um ser mimético”, a última peça encaixava-se, “ele assume a forma que mais nos agrada para seduzir-nos, como fazem os vampiros dos contos, só que esse é real!” A criatura percebe sua presença e sente o cheiro de seu sangue no facão. Afasta-se e o leiloeiro vira-se encarando aquele estranho segurando um facão em uma das mãos. Guilherme escuta em sua mente uma voz feminina dizendo:
- Socorro! Esse é um ex-namorado que jurou matar-me se não ficasse com ele!
Guilherme arregala os olhos enquanto vê o jovem, com um olhar alucinado, partir para cima dele com um candelabro de ferro que tinha pego de uma mesa de canto, e ataca com golpes aparvalhados, mas mortais se atingissem o canto certo. E todos eram dirigidos à sua cabeça. O pesquisador esquivou-se duas vezes enquanto pedia, gritava desesperadamente para que o rapaz parasse, que aquilo era um monstro, quando um dos golpes acertou seu ombro, causando uma dor lancinante, ao mesmo tempo, ele escutou uma risada malévola em sua mente.
Foi aí, exatamente aí, que a sanidade perdeu sua luta inglória! O rosto de Guilherme anuviou-se e com um movimento rápido, cortou a jugular do leiloeiro com a lâmina destinada à criatura. A risada mental parou, mas nosso louco amigo olha para o corpo caído a seus pés e começa a rir descontroladamente, depois a chorar, e foi assim; rindo e chorando, e a loucura queimando no olhar, que ele partiu correndo em direção à criatura. O facão girava à esmo, comandado por uma fúria insana a qual o vurdalak não foi capaz de conter.
Ao final de alguns segundos, uma massa disforme jazia no chão e aquilo que já fora um homem estava parado sobre ela, com um ombro deslocado e vários ferimentos pelo rosto e braços. Nada do que ele foi sobreviveu àquele dia, sua mente estava um turbilhão incompreensível: era um herói; era um assassino; o que ele era? Não sabia, apenas sabia que muitas outras coisas sobrenaturais assolavam sua cidade, e que uma delas ficava sobrevoando a ponte, e que somente ele poderia mata-la.
Correu em direção à ponte para dar fim a mais esse terror, e seu plano era simples: quando a coisa, que era invisível, passasse por baixo da ponte, ele pularia e a agarraria em pleno ar, matando-a em seguida. “É um excelente plano!” pensou com um olhar alucinado, enquanto sumia gargalhando no meio da noite.
Fabiano Machado